ALERTA: A criminalidade e a violência crescem de forma assustadora no Brasil. Os policiais estão prendendo mais e aprendendo muitas armas de guerra e toneladas de drogas. A morte e a perda de acessibilidade são riscos presentes numa rotina estressante de retrabalho e sem continuidade na justiça. Entretanto, os governantes não reconhecem o esforço e o sacrifício, pagam mal, discriminam, enfraquecem e segmentam o ciclo policial. Os policiais sofrem com descaso, políticas imediatistas, ingerência partidária, formação insuficiente, treinamento precário, falta de previsão orçamentária, corrupção, ingerência política, aliciamento, "bicos" inseguros, conflitos, autoridade fraca, sistema criminal inoperante, insegurança jurídica, desvios de função, disparidades salariais, más condições de trabalho, leis benevolentes, falência prisional, morosidade dos processos, leniência do judiciário e impunidade que inutilizam o esforço policial e ameaçam a paz social.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O PESSIMISTA ENTRE A ANARQUIA E O PODER

Eliana Cardoso - O Estado de S.Paulo, 22 de fevereiro de 2012 | 3h 06

No território da bandidagem e da violência, a discussão da origem do Estado não se assenta na República de Platão, mas na lenda hobbesiana da vida curta e brutal. E - lamenta-se o señor Juan, protagonista de Coetzee no Diário de um Ano Ruim - Hobbes nos esconde que a entrega do exercício da força ao Estado é irreversível e impede para sempre a volta ao estado natural. Entretanto, se o estado natural era a barbárie, porque haveríamos de querer voltar para lá? Você não quer. Nem eu. Mas ao señor Juan interessa demonstrar a solidez da opinião anarquista: o que está errado com a política é o poder em si.

Para ilustrar seu argumento o señor Juan comenta a "ingenuidade" do filme Os Sete Samurais, no qual Kurosawa oferece sua versão da origem do Estado. Uma aldeia japonesa, durante um período de desordem política - quando o Estado praticamente deixara de existir -, sofria invasões de uma tropa de bandidos, que roubava mantimentos, estuprava mulheres e matava quem resistisse. Aos poucos, os bandidos - mutantes de predadores em parasitas - sistematizaram as visitas, comparecendo à aldeia apenas uma vez por ano para cobrar tributo.

O filme começa com a decisão dos camponeses de contratar um bando de durões (sete samurais desempregados) para proteger a aldeia. Os samurais derrotam os bandidos e, tendo visto como o sistema de extorsão funciona, oferecem aos camponeses uma proposta: pagamento anual em troca de proteção permanente. Como Kurosawa é um sonhador romântico, quando os camponeses recusam a oferta, os samurais vão embora em paz.

Coetzee desacredita do final feliz do filme de Kurosawa, mas é exatamente um final feliz que desejamos na solução dos conflitos iniciados pela Polícia Militar que ocupou a Assembleia Legislativa da Bahia, durante a segunda semana de fevereiro. Por isso, vários analistas tentaram entender o que se passou e perguntar como evitar que o motim se repita no futuro.

Vale começar passando em revista o susto da população brasileira, quando o movimento articulado por grevistas espalhou o pânico para forçar a aprovação da PEC 300, que cria piso nacional para o salário de policiais e bombeiros. Os homens do Exército e da Força Nacional fecharam o cerco aos policiais militares acampados dentro do prédio da Assembleia Legislativa em Salvador, transformado em quartel-general dos grevistas. Fracassada a primeira tentativa de negociação, o Exército endureceu. O clima ficou tenso. Helicópteros deram rasantes sobre o prédio. De dentro da Assembleia, um dos líderes do movimento ordenou atos de vandalismo. A greve provocou uma onda de crimes. Houve relatos de mendigos assassinados e ônibus invadidos por supostos policiais. O Exército reforçou a tropa que cercava a Assembleia. Suspendeu a entrega de comida. Cortou a energia e a água. A ocupação terminou.

As greves policiais são comuns no Brasil, declarou um defensor dos grevistas, no suplemento Aliás de O Estado de S. Paulo, como se o clichê do "todo mundo faz" pudesse justificar a não justificável violação dos direitos humanos da população, sujeita a assassinatos e saques.

A maioria dos analistas concordou que a reivindicação salarial era justa. Mas a maioria também argumentou que uma reivindicação justa deixa de sê-lo quando vem vinculada a técnicas de intimidação e extorsão. A discussão então se voltou para a regulamentação do direito de greve do setor público e a omissão do Congresso Nacional na aprovação desse disciplinamento.

Mas a nossa Constituição inclui os policiais e os bombeiros na categoria de militares, porque a eles cabe preservar a ordem e garantir a segurança. Os profissionais que portam armas estão, segundo a Constituição, barrados da sindicalização e da greve. A esses servidores públicos, portanto, não se aplica a necessidade de regulamentação do direito de greve, pois a proibição já existe.

Nenhuma democracia conta com organizações simétricas para todos os seus grupos. Por exemplo: os desempregados, os consumidores e os contribuintes não se encontram organizados. A consequência é que grupos organizados e poderosos (como o dos trabalhadores sindicalizados ou o dos banqueiros) tendem a ignorar as perdas para os grupos não organizados. As forças do mercado não são suficientes para garantir comportamentos que beneficiem igualmente todos os grupos sociais. Entende-se, portanto, que os policiais precisam reivindicar ajustes, mas terão de fazê-lo por meio de atos de suas associações ou esperar que o Estado lhes dê cobertura legal para realizarem um movimento reivindicatório disciplinado e com mobilização parcial, sem ação violenta, sem ocupação de prédios e sem vandalismo.

Aqui entra a inação do Congresso Nacional e dos governos estaduais e federal. A sociedade pergunta-se por que a PEC 300, que tramita na Câmara desde 2008, ainda não foi discutida nem se votaram emendas para harmonizar salários levando em consideração as condições e o custo de vida nas diferentes regiões do País. Por onde andavam nossos representantes todos esses anos?

A explicação parece ser a de que os políticos acreditam que não têm mandato para se anteciparem aos problemas e o público não reage à inação de seus representantes. A consequência é que problemas que parecem pequenos acabam se transformando em tragédias. A Câmara só age sob pressão.

O señor Juan - personagem de Coetzee que abriu este artigo - declara-se anarquista-quietista-pessimista. Anarquista porque o que está errado com a política é o poder em si. Quietista porque a vontade de se pôr a mudar o mundo se encontra, ela também, infectada pelo desejo de poder. E pessimista porque não acredita que coisas possam mudar. A posição parece intelectualmente sofisticada. E, com certeza, é cômoda. Mas se todos pensarmos como ele, estaremos entregando o Brasil aos bandidos.

*ph.D em Economia pelo MIT, é autora de 'Mosaicos da Economia' (Saraiva, 2010). Site: www.elianacardoso.com

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