ALERTA: A criminalidade e a violência crescem de forma assustadora no Brasil. Os policiais estão prendendo mais e aprendendo muitas armas de guerra e toneladas de drogas. A morte e a perda de acessibilidade são riscos presentes numa rotina estressante de retrabalho e sem continuidade na justiça. Entretanto, os governantes não reconhecem o esforço e o sacrifício, pagam mal, discriminam, enfraquecem e segmentam o ciclo policial. Os policiais sofrem com descaso, políticas imediatistas, ingerência partidária, formação insuficiente, treinamento precário, falta de previsão orçamentária, corrupção, ingerência política, aliciamento, "bicos" inseguros, conflitos, autoridade fraca, sistema criminal inoperante, insegurança jurídica, desvios de função, disparidades salariais, más condições de trabalho, leis benevolentes, falência prisional, morosidade dos processos, leniência do judiciário e impunidade que inutilizam o esforço policial e ameaçam a paz social.

domingo, 11 de novembro de 2018

TEM QUE HAVER SALVAÇÃO




CORREIO DO POVO 10/11/2018

OSCAR BESSI



Eu ainda não havia trabalhado com um oficial da nova geração, quando ele chegou na minha unidade. Sou da velha academia, garotos que se submetiam a quatro anos de quase clausura num curso intenso para serem, ao final, declarados aspirantes a oficiais. Capitães eram veteranos, oficiais experientes, curtidos pela caserna. Os tempos mudaram. É a evolução. Hoje, jovens bacharéis em Direito podem ingressar num curso mais veloz e moderno. Ser capitão é o início do oficialato. Mas aquele rapaz, uma década mais jovem que eu, trazia uma experiência respeitável na segurança pública: fora soldado, inclusive no Pelotão de Operações Especiais caxiense, e ficou alguns anos na Polícia Civil. E mostrou que fazia valer na prática o fato de ter conhecido vários lados da moeda. Era um tremendo líder, um baita comandante.

Tornamo-nos amigos. Parceiros. Conversávamos de literatura – ele escrevia alguns textos e me mostrava – à depressão que, a certa altura da vida, estremeceu ambos. Homem gentil, inteligente, humano. Paizão. Ético, tratava todos com a mesma polidez, dentro ou fora do quartel. Éramos partidários da neutralidade política, da legalidade e do equilíbrio, porque alguém precisa ficar de fora para mediar os conflitos em dias difíceis. Embora, como uma grande mente, ele fosse pensador crítico. Mas nossas concepções e observações restringíamos às conversas pessoais. Estudamos e fizemos juntos a prova para o curso, no início do ano passado, que nos habilitaria a promoção a major. Não deu. Ele fez só para ter experiência, apostaria em 2019. Eu, outra vez, caí por minha incapacidade pulmonar. Ele pediu que eu me tratasse. Há poucas semanas lhe mostrei os bons resultados de uma espirometria, o tratamento acertado. Então combinamos estudos. Seríamos colegas de aula, parceiros de viagem à capital, majores no futuro. Eu brincava que minha aposta era só nele. Éramos vizinhos de bairro. E, nos dois batalhões onde convivemos, vez ou outra ele entrava na minha sala, fechava a porta e desabafava inquietações funcionais ou debatia algum novo livro. Saía dizendo, voz firme, “foi bom, veterano, foi bom, vamos lá!”. E seguia sua rotina de fazer a diferença. Porque era um grande profissional. No front e na retaguarda. Não à toa o Comando Geral da BM o reconheceu como tal, em cerimônia recente.

Então ele decide nos deixar. Sem se despedir. Recebi a notícia trágica por telefone assim que dei dois passos para fora do ônibus, após uma eufórica noite xavante em Pelotas. Perdi meu chão. Tá difícil acreditar. Uma colega de farda, que cursa Psicologia, sempre insiste no quanto precisamos procurar ajuda. O número de policiais que cometem, ou cogitam, suicídio só cresce. Mas não quero estatísticas. Nem quero só chorar outra falta. Preciso fazer algo. Não sei nem o quê. Deve haver um jeito de mudar isto. Tem que existir uma tábua de salva

quarta-feira, 13 de junho de 2018

CUSTO DA VIOLENCIA CONTRA POLICIAIS

EXTRA 03/06/18 04:30

Estudo da PM mostra que violência contra policiais apenas em 2017 custará R$ 35 milhões ao Estado

Cabo Braga, que perdeu a pena em operação policial, abraça seu filho.
Cabo Braga, que perdeu a pena em operação policial, abraça seu filho. Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
Matheus Maciel

Vila Cruzeiro, Complexo da Penha, 8h da manhã de 11 de janeiro de 2017. Numa emboscada, o grupo tático da UPP é atacado a tiros. O cabo Braga é o primeiro a descer do carro. Em segundos, uma granada explode perto de seu corpo. Ele é arremessado a quatro metros de altura. Quando tenta se levantar, percebe que perdeu a perna esquerda.

No meio do tiroteio entre policiais e traficantes, Braga é socorrido e levado para o Hospital estadual Getúlio Vargas, na Penha. Sofre três paradas cardíacas e precisa de dez bolsas de sangue. Apesar disso, quando se lembra daquele dia, o cabo, que prefere não ter o nome completo divulgado, se considera um homem de sorte: não se tornou mais um dos 28 policiais militares mortos em serviço no ano passado.

Uma perda que não é medida pela Polícia Militar apenas em vidas e famílias destruídas. Um estudo feito pela corporação mostra que a violência cometida contra esses PMs, durante o tempo que teriam de atividade profissional, custará em pensões R$ 35 milhões ao Estado. Um preço que o governo paga pela sua própria incapacidade de reduzir a criminalidade.

O estudo, produzido pela Diretoria de Assistência Social (DAS) da PM e obtido pelo EXTRA, mede os custos para os cofres do estado do que define como uma "guerra urbana". Nos últimos 24 anos, foram 3.397 policiais mortos, e outros 15.236 feridos.

— Sem falar na perda imensurável na questão humana, a PM diminui cada vez mais seu efetivo policial e gera um rombo no investimento ainda maior — afirma o coronel Fábio Cajueiro, responsável pela DAS.

O oficial explica que o cálculo foi feito com base no salário que a família de cada policial receberá no tempo restante que o PM teria de serviço. Ou seja, caso o agente tenha morrido com apenas cinco anos de corporação, o cálculo multiplica os 25 anos restantes para a aposentadoria por 13 (referente aos 12 meses de salário somado ao 13º) e, por fim, pelo salário mensal.

Dessa forma, a morte de um soldado no seu quinto ano de atividade policial representará para a corporação cerca de R$ 1,3 milhão. Sem reforçar a segurança do estado. Ao ser morto em serviço, o PM recebe um soldo acima do cargo hierárquico em que estava: o soldado utilizado como exemplo receberá como cabo.

— É importante frisar que estamos apresentando um cálculo que leva em consideração apenas os salários, sem os demais custos que existem. É um número assustador que só vem crescendo — conta Cajueiro.

Além do cálculo baseado nas mortes do ano passado, o estudo realizou um levantamento sobre o custo de cada policial afastado em razão de ferimentos por armas de fogo. No total, foram levados em conta 255 policiais entre os 784 feridos em 2017. O valor final se aproxima dos R$ 3,5 milhões. Nesse caso, o cálculo considera os dias afastados de serviço de cada PM.

Agora reformado por invalidez, o cabo Braga não entra nos cálculos do DAS. O policial agora leva seus dias tentando melhorar as condições para os companheiros de farda que mais precisam. Ele faz parte da Comissão de Valorização de Veteranos Mortos e Feridos da PM.

— Infelizmente, a situação só piora. E com as perdas constantes, há uma menor qualidade de equipamentos, meios de prevenção, treinamentos e auxílios aos profissionais — lamenta Braga.

A VIDA EM FAMÍLIA

A vida do policial mudou por completo desde que sofreu o ferimento. Ele é faixa preta em taekwondo e tinha um projeto social de artes marciais gratuito no Morro São João, no Engenho Novo. O projeto deu certo e conseguiu atingir mais de 200 jovens, mas durou apenas dois anos. Teve de ser encerrado pelo crescimento da criminalidade na região.

— Eu perdi minha melhor perna de chute. Agora, não posso mais fazer algo que tinha paixão. Mal posso me locomover pela cidade, na verdade. O Rio não é preparado para os deficientes — comenta o cabo.

O PM conta que apenas percebeu a falta que faria para o filho quando estava deitado na cama do hospital, com a perna amputada e correndo risco de vida. A família decidiu por preservar a notícia da criança enquanto a visita no hospital não era possível. Braga contou com o apoio de sua esposa e de sua família durante todos os momentos difíceis.

— Escondemos durante uns dias. Minha esposa e minha família foram essenciais. Mas, quando vi meu filho, não aguentei. Ele me deu um abraço e ficamos chorando juntos. Eu não tinha chorado até ali. Foi o momento da minha derrocada pessoal.

O filho de apenas quatro anos nasceu após Braga estar há dois anos na corporação. Ao contrário dos conselhos que escutava dos companheiros, não diminuiu o ritmo de trabalho:

— Eu queria dar ao meu filho uma vida mais tranquila. Achava que, para tornar a sociedade melhor, precisava ir além.

Apesar da pouca idade, o filho tenta não chorar mais na frente do pai. Ainda não há uma noção total da dificuldade que Braga tem com a perda da perna. No entando, a admiração não foi abalada pelo acidente e gera até brincadeiras.

— Ele brinca comigo, pula num pé só. Mas ao mesmo tempo dá conselho: "pai, toma cuidado para os bandidos não tirarem sua outra perna". Ele não entende tudo, mas tem a preocupação — compartilha o cabo.

MORTES PRECOCES SÃO ALARMANTES

Entre os dados apresentados pelo estudo, há o tempo de atividade dos policiais mortos em serviço no ano passado. Cerca de um terço dos PMs morreram quando tinham no máximo 5 anos de corporação.
— De infeliz destaque, há um soldado que só teve dois anos trabalhando na Polícia Militar. Uma vida tão nova já sendo retirada pelo crime e deixando de servir a corporação pelos próximos 28 anos. É uma perda imensurável — afirma Cajueiro.

Outro número também chama atenção entre os mais novos. Em 2017, o afastamento psiquiátrico gerou um gasto superior a R$ 28 milhões. Cerca de 58% dos licenciados estão nos primeiros dez anos de serviço.

— Esses policiais podem acabar retornando, mas não temos como saber. São uma perda em relação ao pessoal disponível no efetivo policial e uma perda para toda a sociedade. São humanos afetados pela guerra em que vivemos — completou o coronel.

RESULTADOS E PROPOSTAS

A Diretoria de Assistência Social trouxe propostas de prevenção com base nos dados levantados. De acordo com o estudo, o custo com os salários e seguros de mortos em feridos foi de R$ 208 milhões no ano passado.

A blindagem dos carros é posta em pauta como principal precaução. Com base nos números citados, o custo da blindagem 3A (proteção para os calibres 22, 38, 9mm e Magnum 375 e 44) das 3.000 viaturas no estado do Rio seria de 50% do valor gasto em 2017 com as perdas.

— O ideal é que haja um olhar especial para a prevenção. Seja nas blindagens, coletes balísticos e leis mais rigídas — afirma o cabo Braga.

sexta-feira, 25 de maio de 2018

DISCUTIR NOVO MODELO DE POLÍCIA

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - POLÍCIA E ENCARCERAMENTO, BODES EXPIATÓRIOS DA VITIMIZAÇÃO DA ESQUERDA. Ele esquece que segurança pública é um direito e direitos são garantido no Estado Democrático de Direito pela força da lei e da justiça onde a polícia é a parte inicial do sistema de justiça criminal e o encarceramento a parte final necessário para penalizar, responsabilizar, limitar direitos, isolar os criminosos da sociedade e mostrar que o crime não compensa, mas abrindo oportunidades para a recuperação do apenado. Além disto, ele esquece que não há encarceramento em massa no Brasil, pois a permissividade das leis, a leniência da justiça e a irresponsabilidade da execução penal permitem que muitos bandidos estejam impunes e outros livres, leves e soltos beneficiados por medidas benevolentes e por falta de vagas prisionais. A sociedade tem que estar em alerta e contra a proposta da esquerda de culpar as polícias e desqualificar o modelo policial militar para para reduzir a contenção do crime, cada vez mais ousado, cruel e empoderado de armas e táticas militares de guerra.

ZERO HORA - 25/05/2018


Eduardo Rosa

"Precisamos discutir um novo modelo para as polícias brasileiras", afirma ex-comandante da PM do Rio. Ibis Pereira é graduado em Direito e mestre e doutorando em História. Coronel da reserva, filiou-se ao PSOL a convite da vereadora Marielle Franco, assassinada em 14 de março

Ibis Pereira tem 33 anos de Polícia militarAnderson Fetter / Agencia RBS


A experiência acumulada em 33 anos de caserna não basta para o coronel da reserva Ibis Pereira analisar o impactante número de homicídios no Brasil e as deficiências nas estratégias de segurança pública no país. Ex-comandante-geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o mais alto posto da corporação, ele também recorre à história para explicar as causas da violência — vai ao período da escravidão para falar das desigualdades e foca na ditadura civil-militar quando o assunto são as heranças deixadas nas instituições.


Com a Constituição de 1988 em mãos, ele conversou com GaúchaZH no início deste mês, quando esteve no Rio Grande do Sul para um debate na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). A falta de um sistema para a segurança pública, o modelo policial e direitos humanos são temas que o hoje doutorando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) aborda a seguir.


O Brasil registra mais de 60 mil homicídios por ano e, também, um superencarceramento. Como chegamos a isso?


Há uma herança muito ruim no país, que anos e anos de República não deslindaram, que é a desigualdade. A obra da escravidão continua. Não à toa, mais de 70% das vítimas de letalidade violenta são negros, pobres, do sexo masculino e moradores de favelas. Isso não é coincidência; é história. Para entendermos essa tragédia que é a violência, precisamos entender isso: antes de falar em segurança pública, devemos falar em segurança social. Precisamos entender que segurança é direito e passa por redução de desigualdades e melhoria das condições de vida dos pobres. Em 1988, criamos a Constituição que tem na dignidade da pessoa seu principio fundamental. Dissemos que iríamos construir uma sociedade livre, justa e solidária, fizemos um capítulo sobre segurança pública, mas ele não foi regulamentado até hoje.


A não regulamentação é falta de vontade política?


Diria que é um pouco disso, sim. Também é um pouco de falta de vontade de enfrentar os lobbies corporativos. Porque, quando você fala em disciplinar o artigo 144, você fala em integrar todas as instituições em um sistema. Isso, de algum modo, mexe com os interesses corporativos. A transição política no país (da ditadura para a democracia) não enfrentou esse poder.


O debate sobre a desmilitarização ou sobre a criação de uma polícia de ciclo completo, que patrulha e investiga, está paralisado?


Antes do debate sobre a Previdência, dentro das polícias militares ensaiamos essa discussão. Há cinco ou seis anos, essa questão andava. Mas creio que voltamos à estaca zero. Precisamos efetivamente discutir um novo modelo para as polícias brasileiras. O desenho dessa regulamentação do artigo 144 da Constituição deve apontar para um novo arranjo das instituições policiais. Nossos indicadores são muito ruins, temos uma taxa de elucidação em inquéritos muito baixa. Migrar do modelo atual para outro modelo, nesse cenário, é muito complexo de se fazer. Estrategicamente, é o caso de fazer o dever de casa, que há 30 anos não fazemos: regulamentar a Constituição, num sentido que permitisse o novo desenho a médio prazo.


Esse resultado, do alto número de mortes violentas à baixa elucidação, é fruto do modelo de polícia?



Não temos sistema efetivamente: há instituições criadas ou herdadas da ditadura civil-militar. Você não pode, de uma maneira rigorosa, falar em política de segurança pública no Brasil no médio e no longo prazos. Você não reduz homicídio se não envolver União, Estados e municípios. Se você não tem sistema, se as coisas dependem das vontades das pessoas que estão sentadas nas cadeiras, no médio e no longo prazos você não consegue andar. É preciso um sistema para amarrar as vontades. E não tem sistema porque até hoje a Constituição é descumprida. A outra questão é o desenho dessas instituições policiais: a ausência de um ciclo completo, o fato de você ter nos Estados uma Polícia Civil que investiga e não patrulha e uma Polícia Militar que patrulha e não investiga. Isso é ruim. Se você levar em consideração que a política de drogas é centrada quase que exclusivamente no confronto e olhar para o modelo de polícia, você vai ver uma conjugação muito ruim. Você tem uma política que aposta no confronto para resolver a questão das drogas e as polícias estaduais são fragmentadas nas suas atribuições. A polícia que efetivamente está nas ruas para patrulhar não investiga. É sobre essa instituição policial que recai a demanda do enfrentamento às drogas na perspectiva bélica. Onde essa polícia que não investiga vai procurar agir? Onde não precisa inquérito policial, onde pode identificar visualmente quem está envolvido no comércio varejista: nas periferias, nas favelas. A conjugação de uma falta de estrutura com uma falta de política adequada para enfrentar a questão das drogas, com esse modelo de polícia que a gente tem, acaba transformando a guerra às drogas em guerra à pobreza.


A PM está mais disposta ao confronto porque não tem a prerrogativa de investigar?



Eu diria que a Polícia Militar é empurrada para esse confronto devido à falta de sistema. Por que insisto tanto no sistema? Porque, pela Constituição, tráfico de drogas e tráfico de armas são atribuições do governo federal. Você precisa, para enfrentar essas questões, conjugar ações de ordem da União com as polícias estaduais e os municípios. Se você não tem sistema, não consegue articular ações nas três dimensões. Para entendermos porque temos polícias tão violentas no seu cotidiano, precisamos olhar para uma estrutura de governança que não existe ou é muito frágil. A fragmentação por si só já é ruim, mas, quando você tem uma polícia que investiga e não patrulha e uma que patrulha e não investiga sem sistema de governança, isso agrava ainda mais essa situação.

Que avaliação o senhor faz da intervenção federal no Rio de Janeiro?



Me parece, num primeiro momento, que tem menos a ver com segurança pública do que com política eleitoral. Se não tivéssemos tido aquele desfile histórico da (escola de samba) Paraíso do Tuiuti, na sua crítica contundente ao governo federal, acho pouco provável que estivéssemos vivendo uma intervenção federal no Rio. Os indicadores criminais neste Carnaval não foram tão diferentes dos anos anteriores. O Rio vem sofrendo há muitos anos por conta de uma dinâmica criminal que é muito específica do Estado e, particularmente, da sua capital. A crise que se abate sobre o Estado do Rio, antes de ser financeira, é política. Falta política pública de segurança. A União não controla armas como deveria, não tem uma política de drogas como deveria ter, o Estado membro sofre com isso, e a solução que o governo apresenta é a intervenção no Estado. Isso é profundamente contraditório. Até agora, os resultados têm sido muito tímidos, para não dizer que não há qualquer resultado. Os confrontos têm se agudizado. Ela é uma medida muito grave porque significa uma subtração da autonomia de um ente federativo.


As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), quando foram criadas, em 2008, tinham uma ideia de polícia comunitária. Mas o projeto cresceu com críticas devido à repressão. ele fracassou?



Creio que sim, pela baixa institucionalidade. A ideia foi generosa, mas não ganhou institucionalidade. O que quero dizer com isso? Comandei a escola de formação de oficias do Rio em 2012. Tinha pouco mais de 200 cadetes e todos seriam destinados, ao final do curso, às UPPs. Estamos falando de quatro anos após a inauguração da primeira UPP. Pois eu não tinha um único manual. É uma ideia generosa, um discurso progressista, mas que foi implementada de forma equivocada. A gestão desse programa cumpriu um calendário apressado. O programa que criou o policiamento de proximidade teve o decreto publicado em 2015. Estávamos no comando e já tínhamos 38 UPPs. E você tem aí o calendário dos grandes eventos. O programa entrou em outra lógica. Em 2013, tivemos um caso muito grave que também não foi enfrentado pelo Estado com a seriedade que deveria, o Caso Amarildo (referência ao pedreiro que desapareceu, em 14 de julho de 2013, após ser detido por PMs e conduzido de sua casa, na Rocinha, à sede da UPP do bairro). O programa dependia da confiança da população. O Caso Amarildo abalou essa relação. E o governo nunca pediu desculpas, nunca admitiu, não fez nenhuma correção de rumo da política de proximidade. Também não se fez reforma nas instituições policiais, ainda que dentro dos limites do Estado. É um conjunto de questões. Mas o programa ajudou a reduzir a letalidade. Tivemos o Morro Santa Marta, a primeira comunidade a receber UPP, onde durante cinco anos não ocorreu uma única troca de tiros.


No Santa Marta, a experiência teve êxito?



Pelo menos no início. De dois ou três anos para cá, já não se pode olhar da mesma forma. Mas, durante um bom tempo, não tivemos troca de tiro. Assim como em outras unidades. As UPPs contribuíram para reduzir a letalidade violenta em alguns lugares..

O delegado Orlando Zaccone, responsável pela investigação do Caso Amarildo, diz que a violência e a corrupção policial são tratados como pontuais. O senhor acha que falta depuração dentro das polícias?


A corrupção policial no Brasil é reflexo da violência policial. Polícias com alta letalidade necessariamente têm problemas graves com corrupção. E a questão é muito simples: a violência tem um desdobramento ético. Uma polícia envolvida diretamente na guerra — e as nossas polícias são empurradas para a guerra — precisa formatar uma subjetividade que faça a guerra. A guerra implica um nível de embrutecimento que vai impactar a dimensão ética. Ter polícias com alto índice de letalidade significa ter policiais adoecidos na sua humanidade. Profissionais adoecidos na sua humanidade são profissionais que vão ter problemas com corrupção. Porque é um desdobramento, é um aspecto desse adoecimento que não é só físico, é moral também.


Em uma entrevista recente ao El País, o senhor afirmou que "o campo progressista precisa encontrar um discurso que fale ao policial". Que discurso é esse?



Acho que o policial de modo geral não se vê contemplado pela fala de uma parte da esquerda. E entendemos: há uma parte da esquerda marxista, na qual eu me situo, que tem noção de que a violência está relacionada às contradições sociais. Quando as contradições sociais estiverem resolvidas, o capitalismo for superado e tivermos uma nova forma de organização social, esses problemas estarão superados. Mas a gente não sabe quanto tempo vai levar isso. Não dá para continuar convivendo com 60 mil pessoas trituradas, trucidadas, esmagadas por ano no Brasil. Não dá para continuar com as polícias adoecidas, brutalizadas por omissões e equívocos. Estamos falando de sofrimento humano. A gente precisa envolver as polícias nisso, porque elas fazem parte desse problema: elas sofrem e fazem sofrer. Não dá para continuar tratando nossos policiais como se eles fossem inimigos, como se estivéssemos em campos opostos. Não estamos. No Estado Democrático de Direito, a polícia existe fundamentalmente como um órgão promotor e defensor da dignidade da pessoa humana. Se os policiais não estão se sentindo contemplados com nosso discurso, tem alguma coisa errada e muito provavelmente é com nosso discurso. Não tem política de segurança pública sem promoção dos direitos humanos, e a polícia tem que ser envolvida efetivamente nesse compromisso.
Coronel deu entrevista com Constituição em mãosAnderson Fetter / Agencia RBS


Falando em direitos humanos, há eco na sociedade o discurso do "bandido bom é bandido morto". Uma pesquisa da qual o senhor foi colaborador mostra que isso encontra abrigo inclusive nas camadas mais pobres, que sofrem muito com a violência. Por quê?



É uma boa pergunta. Esse discurso, pelo menos no Rio de Janeiro, é muito relacionado aos anos 1980 e às políticas públicas que foram desenvolvidas ou que tentamos desenvolver ao longo dos dois governos de Leonel Brizola. Na época, esse discurso era muito utilizado por algumas pessoas — que inclusive se elegeram com esse tipo de plataforma — para marcar uma posição às mudanças que Brizola pretendeu fazer e, me parece, se tivessem vingado, a realidade seria completamente diferente. Porque Brizola entendeu a questão da centralidade da dignidade da pessoa humana para a política pública de segurança e a necessidade de se ter polícias comprometidas com essa perspectiva. E foi muito boicotado. Eu poderia dizer que foi sabotado por boa parte das próprias polícias. Uma parte da sociedade não reconhece a outra parte como igual em direitos. Então, o outro é o inimigo. Outro é o outro, contra quem eu tenho que me proteger. Essa lógica do nós contra eles, essa perspectiva do confronto, casa com essa herança ancestral que a gente tem, de transformar questões policiais em guerra. Com a ditadura civil-militar, isso que a gente já tinha, a doutrina da segurança nacional transformou em ciência. E essa ideologia impregnou as forças policiais ao longo desses 21 anos de ditadura. Curiosamente, a partir dos anos 1970, quando já estávamos saindo dessa ditadura, incorporamos outra perspectiva bélica, que começou em 1971 nos Estados Unidos, que é a guerra às drogas. Troca uma guerra pela outra.


Por outro lado, vemos uma expansão do estado penal e a criminalidade crescendo paralelamente.



O estado policial está no outro extremo do Estado Democrático de Direito. Desde que publicamos essa Constituição, ela é vítima de um ataque sistemático. Logo depois que ela foi publicada, muita gente disse que a Constituição tornaria o Brasil ingovernável. E ainda é um debate a história de que o Brasil não cabe na Constituição. Existe uma parte da sociedade com uma mentalidade escravocrata que não quer um país para todo mundo. O estado penal, o "bandido bom é bandido morto", a militarização da segurança pública, esse belicismo no campo penal, o superencarceramento, a ideia de que a gente vai resolver os problemas da segurança pública com direito penal atende a esse déficit democrático.


Qual é o impacto da execução da Marielle Franco para a segurança e para a democracia?


A Marielle era uma vereadora no exercício de um mandato popular, relacionado a causas muito caras à democracia brasileira. A questão das favelas, da violência nos espaços de favela, a inclusão dos direitos da comunidade LGBT... A Marielle foi assassinada em uma tentativa de calar sua voz, em um ataque a todas essas bandeiras. Sob o ponto de vista da democracia, assassinar um representante popular no exercício do mandato é muito grave, no momento em que a Constituição completa 30 anos e no curso de uma intervenção federal. Parece-me absolutamente decisivo para a saúde da nossa combalida democracia que a justiça, que esses homicídios _ do Anderson e da Marielle _ sejam esclarecidos. A forma como a vida é banalizada num país em que a Constituição diz que a dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental talvez seja a maior prova do quanto temos de caminhar para efetivamente podermos dizer que vivemos num Estado Democrático de Direito.


Em 2016, o senhor se filiou ao PSOL. Qual foi a sua intenção ao entrar para um partido político depois de ter atingido o topo da carreira na polícia?


Foi a Marielle que me levou para o partido, ela era minha amiga. Busquei uma maneira de tentar contribuir para vivermos numa sociedade decente. Me angustio muito com a situação do país. Me entristeço ao ver o estado em que se encontram as polícias brasileiras. Passei 33 anos na PM e, se tivesse de começar uma vida novamente, seria policial militar. Gostaria de ter uma polícia mais valorizada, mais comprometida com a democracia e com os valores democráticos. Queria uma polícia melhor. No meu Estado (RJ), morrem mais de cem policiais todos os anos, isso me magoa e me machuca muito. Entendi que, dentro de um partido político, poderia ajudar na formulação de ideias.


Está no seu horizonte uma candidatura a algum cargo público?


Não. Não está. Entrei para o partido para poder ajudar. Para ser orgânico, para usar uma ideia gramsciana. O Brasil em que eu vivo é muito diferente do que eu gostaria.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

POLÍCIA QUE MATA, POLÍCIA QUE MORRE


Polícia que mata, polícia que morre

Por Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima, Fórum Brasileiro de Segurança Pública

DO G1 10/05/2018 05h15







(Foto: Alexandre Mauro/G1)




Foi na tarde de 13 de julho de 2017 que Ricardo Nascimento, de 39 anos, entrou para uma triste estatística: tornou-se uma dentre as 940 vítimas fatais de intervenções policiais no Estado de São Paulo registradas no ano passado. Negão, como era chamado, foi um carroceiro bastante conhecido e querido da região de Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo. Na tarde em que foi vítima da ação policial, Negão parecia alterado, e gritava na rua com um pedaço de madeira na mão. Um policial recém-formado o interpelou e, antes que pudesse obedecer, foi atingido por dois tiros na região do tórax.


O boletim de ocorrência afirma que o policial militar foi obrigado a se defender, o que justificava o homicídio praticado. Já os relatos de testemunhas e as cenas gravadas pela câmera de um prédio evidenciam o brutal despreparo do agente, que estava a metros de distância e desrespeitou todos os protocolos de uso da força na ocorrência.


São Paulo, reconhecido nacionalmente como o principal caso de sucesso na redução dos homicídios, cuja redução ultrapassa 70% desde o ano 2000, assume hoje uma liderança ingrata: 1 em cada 5 assassinatos do estado tem a autoria de policiais, a maior proporção do país.


Mas este problema não se restringe às polícias paulistas. Casos como esse acontecem diariamente em todo o país e não há como estimar quantas dessas mortes podiam ter sido evitadas. O número de mortos em decorrência de intervenções policiais divulgado pelo Monitor da Violência mostra que o Brasil está flertando com a barbárie.


Em março, a divulgação dos indicadores de homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte mostrou um aumento de 2,7% em relação a 2016. Agora, o indicador de letalidade da polícia apresentou crescimento de 18,7% no mesmo período, indicando um total descontrole das forças policiais em diversos estados.



Todos estes casos foram registrados como morte decorrente de intervenção policial/resistência seguida de morte, ou seja, supõem que os policiais fizeram uso da força em legítima defesa e no estrito cumprimento do dever legal. Casos de homicídio, feminicídio ou mesmo envolvimento de policiais em chacinas e execuções sumárias não estão incluídos nessa conta.


Ainda mais grave é constatar que as mortes decorrentes de intervenções policiais já são a segunda causa de assassinatos em todo o Brasil, ultrapassando os feminicídios (946) e os latrocínios (2.447). Isso significa dizer que na terra do samba e do futebol é mais provável ser vítima de um tiro da polícia do que ser morto por um assaltante durante um roubo.


Geralmente justificadas como sinônimo da eficiência policial, que chega mais rápido ao local da ocorrência, ou como resposta ao aumento da criminalidade, o fato é que o aumento da letalidade policial demonstra o completo descontrole do Estado brasileiro sobre suas forças policiais. Não à toa, o Brasil foi condenado na OEA ano passado pelas chacinas ocorridas na Comunidade Nova Brasília, durante operações policiais no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, em 1994 e 1995.






(Foto: Alexandre Mauro/G1)


As mortes de policiais


Um fenômeno sobre o qual sabemos muito pouco diz respeito às circunstâncias dos assassinatos de policiais no Brasil. Se a princípio podemos comemorar a redução de 15% nos homicídios de policiais entre 2016 e 2017, pouco sabemos sobre como chegamos a esse resultado.



Dos 385 policiais assassinados em 2017, 91 estavam no horário de serviço quando foram mortos e 294 foram mortos fora do horário de trabalho. De um lado, isso revela que os policiais estão menos expostos durante o expediente, quando estão com a equipe, viatura, rádio e todo o apoio da corporação. Ainda assim, é inconcebível olhar para essa estatística como algo positivo porque nenhum policial devia ser morto por cumprir sua função. Esse número é muito elevado sob qualquer critério internacional, assim como em comparação com outras carreiras. Não seria um escândalo se 91 juízes ou médicos tivessem sido assassinados enquanto trabalhavam no ano passado?


Mais preocupante é verificar que quase três centenas de policiais foram mortos fora do serviço, em situações que desconhecemos por completo, mas cujas hipóteses são: policiais morrem durante o “bico” como segurança particular, um mecanismo para complementar renda que faz parte do cotidiano da grande maioria dos profissionais de segurança; policiais morrem porque são levados a crer que são “policial 24 horas”, estando sempre armados e prontos a reagir a qualquer situação, mesmo sem apoio operacional; policiais morrem simplesmente porque são policiais, e no mundo do crime a cabeça de um policial vale muito; maus policiais morrem porque estão envolvidos com a criminalidade.


Não é raro vermos políticos ou mesmo lideranças das organizações policiais verbalizando a máxima de que bandido bom é bandido morto. Em uma sociedade aterrorizada em que os índices de violência só crescem, é natural que discursos de ordem a qualquer custo seduzam eleitores reféns do medo. Mas para além das retóricas de gabinete, permeadas de adjetivos que pintam as ruas das cidades brasileiras como cenários de guerra, o fato é que uma política de segurança baseada no enfrentamento violento não produz nenhum resultado positivo, nem para a polícia nem para a sociedade.



Se assim o fosse, após mais de um milhão de assassinatos nos últimos 20 anos, o Brasil viveria em plena paz dos cemitérios e é exatamente o contrário disso o que acontece. Vamos naturalizando a violência e os políticos vão “dobrando as metas de mortos”, quase que como em um moto perpétuo. Ninguém tem coragem de parar e buscar soluções que garantam a segurança pública como fator de cidadania e de desenvolvimento.


Nesse movimento, tratar os policiais como “heróis” é a melhor desculpa que um político pode ter para privá-lo do instrumental mais básico de trabalho. Heróis não precisam de bons salários, armas de fogo de qualidade ou seguro de vida, apenas de sua coragem. A propaganda ideológica de policiais heróis é perversa e faz com que a população aplauda medidas extralegais e, em especial, faz com que os policiais tenham seus direitos desrespeitados e vilipendiados. Policial é trabalhador e servidor público e precisa ser valorizado e respeitado.


Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima são diretores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

POLÍCIAS MAIS VIOLENTAS DO BRASIL


No Norte e no Nordeste, oito das dez polícias mais violentas do Brasil


Por Bruno Paes Manso, Núcleo de Estudos da Violência da USP

DO G1 - 10/05/2018 05h15 A






(Foto: Alexandre Mauro/G1)




Em vez de trabalharem para reduzir as taxas de homicídios, as polícias de alguns estados brasileiros têm sido responsáveis pelo agravamento do quadro de violência ao registrar uma quantidade crescente de mortes durante o patrulhamento. Nos últimos anos, o problema piorou principalmente nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, onde estão oito das dez polícias mais letais do país.


Os casos de mortes por intervenção policial, historicamente, costumavam se concentrar no Rio de Janeiro e em São Paulo, que ficaram conhecidos por terem as polícias mais violentas do Brasil e do mundo. Depois de 2014, outros estados passaram a registrar aumento de mortes por policiais, não se sabe se decorrente do crescimento real da letalidade ou se pela melhoria dos registros oficiais, que desde 2009 passaram a ser contabilizados e divulgados nos anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.


Considerando os dados contabilizados, no entanto, em quatro anos, a taxa de mortes por intervenção policial no Brasil subiu 118%, passando de 1,1 por 100 mil habitantes em 2013 para 2,4 por 100 mil em 2017, conforme o levantamento do Monitor da Violência. São Paulo caiu para a 12ª posição entre as polícias que mais matam no Brasil. O espraiamento da letalidade consolidou de vez o país na liderança mundial das polícias mais violentas do planeta.


A escalada mais impressionante ocorreu no Amapá, estado que ocupa o primeiro lugar no ranking brasileiro. Eram quatro casos de mortes por intervenção em 2013, que se multiplicaram por 16, alcançando 66 ocorrências no ano passado. O índice de 8,3 homicídios por 100 mil habitantes no estado é quase o mesmo da taxa geral de homicídios de São Paulo. Se há um lado positivo nesses dados apresentados pelo Monitor da Violência é que pelo menos agora a sociedade tem uma noção mais ampla do grau de despreparo das polícias brasileiras.



Algumas autoridades, inclusive oficiais das próprias corporações violentas, tentam argumentar que a letalidade elevada é uma decorrência da postura ativa dos policiais no enfrentamento ao crime. Em todas as polícias do mundo, no entanto, essas mortes por intervenção são sinônimo de falta de comando e de treinamento dos policiais para agir de forma inteligente e coordenada.


Nesses números, não constam os casos suspeitos de terem sido praticados por grupos de extermínio formado por policiais. Em 2017, por exemplo, dois policiais morreram no Amapá. A morte do sargento Hudson Conrado, atingido a tiros em outubro de 2017 enquanto aguardava a esposa sair de um culto em Macapá, causou grande comoção no estado. Nas horas que se seguiram, contudo, os moradores de bairros pobres testemunharam um drama que tem se repetido pelo Brasil. Em um prazo de quatro horas, sete jovens foram assassinados nas periferias da cidade. O desinteresse das autoridades em acompanhar o motivo das execuções levou familiares das vítimas a pedirem apoio da Comissão Nacional dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil para investigar a ação de grupos de extermínio no estado.


A tolerância à violência policial pode abrir brechas para o surgimento de grupos criminosos fardados, como ocorreu no Rio de Janeiro, que em 2017 ficou na segunda posição do ranking, com taxa de 6,7 por 100 mil habitantes.






(Foto: Alexandre Mauro/G1)



Impunidade e o fortalecimento das milícias


A impunidade histórica dos assassinatos praticados por policiais no Rio permitiu o fortalecimento das milícias. As vistas grossas deram uma vantagem aos milicianos frente aos demais grupos, que com o passar dos anos passaram a dominar um número crescente de comunidades no estado – com a conivência de alguns políticos – até se tornar uma das principais forças do crime fluminense. Integrantes das milícias – que são formadas por policiais, agentes penitenciários, bombeiros e seguranças privados – são os principais suspeitos de terem planejado o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em março deste ano, ocorrido durante a intervenção federal.


O crescimento do mercado de drogas e do poder de fogo dos criminosos no Brasil também tem levado muitos policiais a se sentirem acuados e a agirem de forma violenta, como se dessa forma estivessem defendendo os integrantes das corporações. O tensionamento desse quadro se acirrou na última década, com a expansão do Primeiro Comando da Capital de São Paulo para outros estados e a articulação de outras facções estaduais a partir dos presídios.


Uma nova cena criminal se formou em quase todos os estados brasileiros, mais estruturada e lucrativa. A violência policial acabou sendo um dos sintomas dessa transformação, revelando o descontrole e a falta de planejamento das autoridades para lidar com essa realidade.


Como resultado, os mesmos estados que testemunharam crescimento generalizado dos homicídios nos últimos anos também aumentaram as taxas de mortes produzidas por intervenção policial. São exemplos o Acre e o Pará, empatados na terceira colocação de violência policial, com 4,5 mortos por 100 mil habitantes; Alagoas (4,2); Rio Grande do Norte e Sergipe (4) e Goiás (3,9).


O Rio Grande do Norte, que em 2017 foi palco das históricas rebeliões em presídios envolvendo o Sindicato do Crime e o PCC, se tornou o estado mais violento do Brasil. O Acre, que ficou na segunda posição no ranking de homicídios em 2017, passou registrar uma disputa sangrenta entre o Bonde dos 13, facção local que se aliou ao PCC, com o Comando Vermelho, promovendo assassinatos filmados e compartilhados pelas redes sociais que aterrorizaram a sociedade local. A sensação de medo e de descontrole parece ter legitimado a ação truculenta das polícias, aumentando o ciclo vicioso de assassinatos.



As realidades históricas de cada estado, no entanto, também tiveram peso importante. O Pará, com um passado vinculado à pistolagem e à disputa política por terra, registrou a maior chacina policial do ano passado. Em maio de 2017, policiais foram cumprir um mandado de reintegração de posse na Fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Alho, e dez pessoas morreram. Os policiais disseram que tinham reagido à agressão dos posseiros, mas a investigação da Polícia Federal apontou que as vítimas tinham fugido e depois foram executadas por policiais numa mata.


Muitos policiais também foram vítimas de homicídios em 2017, totalizando 385 mortes no Brasil. O total do ano passado, contudo, foi mais baixo que o do ano anterior, em que 493 policiais morreram. Existe um padrão diferente quando policiais matam e quando policiais são assassinados. A maioria dos homicídios praticados por policiais ocorre durante o serviço. Já o grosso das mortes dos policiais ocorre quando ele está de folga, muitas das vezes durante o bico de segurança, feito para complementar a renda, baixa demais para uma profissão com tantas responsabilidades e tantos riscos.


Bruno Paes Manso é jornalista e pesquisador do NEV-USP

PESSOAS MORTAS POR POLICIAIS E ASSASSINATOS DE POLICIAIS

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - ESTA MATÉRIA NÃO LEVOU EM CONTA QUE A POLÍCIA ESTÁ ENVOLVIDA NUMA GUERRA URBANA NUM CENÁRIO EM QUE O CRIME ESTÁ INFILTRADO NAS COMUNIDADES E VEM SENDO FAVORECIDO PELA PERMISSIVIDADE DAS LEIS, LENIÊNCIA DA JUSTIÇA, CAOS NA EXECUÇÃO PENAL E OMISSÃO NOS PODERES CONSTITUÍDOS. Nesta guerra, bandidos são mortos e policiais tentam sobreviver aos ataques e atentados a mando e promovidas por facções e quadrilhas organizadas que dominam presídios e se abastecem com drogas e arsenal de guerra trazidas pelas fronteiras despoliciadas.

Monitor da Violência



Cresce número de pessoas mortas pela polícia no Brasil; assassinatos de policiais caem

País teve 5.012 mortes cometidas por policiais na ativa em 2017, um aumento de 19% em relação a 2016. Já o número de policiais mortos caiu: foram 385 assassinados no ano passado. Falta de padronização e transparência dificulta consolidação dos dados.


Por Clara Velasco, Gabriela Caesar e Thiago Reis, G1
10/05/2018 05h15



O Brasil teve no ano passado 5.012 pessoas mortas por policiais – 790 a mais que em 2016. No mesmo período, 385 policiais foram assassinados – número menor que o do ano anterior. É o que mostra um levantamento feito pelo G1 com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal.







O número de vítimas em confronto com a polícia cresceu 19% em um ano. Já o de policiais mortos caiu 15% – foram 453 oficiais assassinados em 2016.

O dado, inédito, compreende todos os casos de “confrontos com civis ou lesões não naturais com intencionalidade” envolvendo policiais na ativa (em serviço e fora de serviço).

O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.


O levantamento revela que:

O Brasil teve 5.012 pessoas mortas por policiais no ano passado – um aumento de 19% em relação ao ano anterior, quando foram registradas 4.222 vítimas;
A taxa de mortes pela polícia a cada 100 mil habitantes subiu e está em 2,4;
O Amapá é o estado com a maior taxa de mortes por policiais: 8,3 a cada 100 mil;
O país teve 385 policiais assassinados em 2017 (menos que em 2016, quando 453 oficiais foram mortos);
O Rio de Janeiro é o estado com o maior número absoluto de mortos por policiais (1.127) e de policiais mortos (119);
São Paulo é o estado com a maior proporção de mortes por policiais sobre o total de crimes violentos: 19,5% .



Para Bruno Paes Manso, do NEV-USP, em vez de trabalharem para reduzir as taxas de homicídios, as polícias de alguns estados brasileiros têm sido responsáveis pelo agravamento do quadro de violência ao registrar uma quantidade crescente de mortes durante o patrulhamento. “Nos últimos anos, o problema piorou principalmente nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, onde estão oito das dez polícias mais letais do país.”


Segundo Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima, diretores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de mortos em decorrência de intervenções policiais mostra que o Brasil está flertando com a barbárie. "Geralmente justificadas como sinônimo da eficiência policial, que chega mais rápido ao local da ocorrência, ou como resposta ao aumento da criminalidade, o fato é que o aumento demonstra o completo descontrole do Estado brasileiro."


"Mais preocupante ainda é verificar que quase três centenas de policiais foram mortos fora do serviço, em situações que desconhecemos por completo", afirmam.





Pessoas mortas por policiais no país (Foto: Betta Jaworski/G1)


Vítimas da polícia: revolta e dor



O Amapá é, mais uma vez, o estado com a maior taxa de mortos pela polícia do país: 8,3 a cada 100 mil habitantes – bem acima da média nacional (2,4). Foram 66 pessoas mortas pela polícia em 2017.



Em janeiro do ano passado, Brendo Pinheiro foi morto por um policial em Macapá. Segundo a PM, ele atirou antes. A irmã diz que ele foi executado pelos policiais e que não foi ouvida pelas autoridades. "Eu abri a veneziana do lado, quando vi eles colocarem a arma na mão do meu irmão e atirarem na parede. Depois, forjaram o tiroteio", conta.


Para o secretário da Segurança do Amapá, Carlos Souza, o alto índice de mortes por intervenção policial no estado é reflexo de um escalonamento do crime. “A taxa aumentou. É um número preocupante. Mas hoje tenho certeza que esses homens estão indo para a rua para proteger as pessoas e têm a sua vida ameaçada. Considero que houve um aumento do enfrentamento da criminalidade.”


Comandante-geral da PM em 2015 e 2016, ele diz que a missão da corporação “é sempre preservar a vida, nunca tirá-la". "Nós somos signatários do método de preservação da vida, do coronel Giraldi, onde temos uma doutrina específica de quando usar a arma de fogo. Desde a formação de soldado todos passam por isso. Intensificar treinamento é sempre muito importante.“


Segundo Souza, para interromper esse ciclo de violência é preciso prevenção. “O policiamento de proximidade é fundamental. E a repressão precisa ser extremamente qualificada, com o fortalecimento de todas as agências de inteligência", diz.


No estado de São Paulo, foram registradas 940 pessoas mortas por policiais. O estado fica apenas atrás do Rio de Janeiro no número absoluto de mortes. E aparece na primeira posição se for considerada a proporção de mortes cometidas por policiais sobre todos os crimes violentos: 19,5%. Isso significa que um em cada cinco assassinatos cometidos no estado tem um policial como autor.






Em imagem de câmera, o mecânico Eduardo dos Santos é levado por um policial após sofrer agressões em sua oficina, em Itapevi (SP). Ele morreu três horas e meia depois (Foto: Glauco Araújo/G1)



O mecânico Eduardo Alves dos Santos, de 49 anos, faz parte das estatísticas. O crime aconteceu em 16 de janeiro, em Itapevi, na Grande São Paulo, quando a mulher dele, Fernanda Camargo, acionou a Polícia Militar para ajudá-la a tirar seus pertences de casa.


Ela conta ao G1 que chamou a polícia por temer que o marido ficasse irritado com sua saída de casa. Santos morreu cerca de três horas e meia depois de ser agredido pelo policial militar Adriano Soares de Araújo. “Eu não chamei a polícia para matá-lo. Eu chamei a polícia para me ajudar”, diz.

“A morte do meu marido não foi porque meu marido tropeçou e bateu a cabeça. A morte do meu marido não foi porque levou um tiro de um bandido. Não. Meu marido foi espancado por um policial dentro da minha casa”, diz Fernanda Camargo, viúva de Eduardo dos Santos.


A Secretaria da Segurança de São Paulo diz que desenvolve ações para redução da letalidade policial. "Uma delas foi a implantação da resolução SSP 40/15, que visa garantir maior eficácia nas investigações de mortes, com o comparecimento das Corregedorias e dos comandantes da região, além de equipe específica do IML e do IC. Os casos só são arquivados após minuciosa investigação pelas polícias a pedido do Ministério Público e ratificação do Judiciário."


"Toda a ocorrência é acompanhada, monitorada e analisada para constatar se a ação policial foi realmente legítima. Em 2017, o índice de suspeitos que morreram após entrarem em confronto com a polícia foi de 18%. Também no ano passado foram presos em flagrante 152.448 pessoas contra 687 que morreram ao confrontar a polícia durante o serviço. Assim, o total de mortos sobre o universo de pessoas presas representa 0,45%", diz a pasta.


Sobre a morte do mecânico, a secretaria diz que o PM foi indiciado e está afastado do serviço operacional. "O Inquérito Policial Militar (IPM) também foi concluído e encaminhado à Justiça Militar. O processo está em instrução na 4ª auditória, avocado pela Corregedoria e o resultado foi lesão qualificada com resultado morte."



No Rio de Janeiro, que lidera as estatísticas em números absolutos (1.127) e tem a segunda maior taxa do país (6,7 mortes a cada 100 mil habitantes), o caso de Maria Eduarda Ferreira, de 13 anos, não é esquecido. A garota foi atingida por um tiro no pátio da escola em Acari, na Zona Norte do Rio, durante uma aula de educação física.






Maria Eduarda foi morta no pátio da escola em que estudava, no Rio. O responsável pelo tiro foi o cabo Fábio de Barros dias (Foto: Reprodução/TV Globo)


O responsável pelo tiro foi um cabo da PM. A Divisão de Homicídios do Rio concluiu que o policial assumiu o risco de matar ao fazer disparos na direção da escola, de onde dois criminosos também atiravam.

“Uma revolta, né, por ela ser morta dentro da escola, de uma forma brutal. (...) Quando eu lembro dela, é isso, é que eu nunca mais eu vou tê-la. Nem eu, nem minhas irmãs, nem minha mãe, nem o pai”, diz Uidson Ferreira, irmão de Maria Eduarda.


A Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro diz que tem diretrizes para as polícias Civil e Militar, referentes aos protocolos operacionais para áreas sensíveis, "localidades onde é elevado o risco de confronto armado com infratores da lei em decorrência de operações policiais com o objetivo de preservar a vida dos moradores e dos agentes da lei".



"Por meio do Exército Brasileiro, o Gabinete de Intervenção Federal disponibilizou as estruturas do Exército Brasileiro no Rio de Janeiro para treinamentos periódicos dos policiais militares – que ocorrem também na sede do Comando de Operações Especiais", afirma a secretaria.





Policiais mortos no país (Foto: Betta Jaworski/G1)


Policiais mortos: luto


O Rio é também o estado com mais policiais mortos. Em 2017, foram 119. É o caso do 2º sargento Renato Cardoso, morto durante uma tentativa de assalto na Zona Norte da capital fluminense. Amanda Soares Santana, a viúva do PM, conta que o crime aconteceu quando Cardoso estava a caminho do trabalho.

“Ele parou no sinal. Houve um assalto no carro ao lado, e os marginais, depois de assaltar esse carro, foram em direção a ele. Alvejaram ele com 10 disparos. Ele morreu ali no local”, diz Amanda Santana, viúva do 2º Sargento Renato Cardoso.


Para ela, os assaltantes perceberam que Cardoso era policial. As investigações, no entanto, ainda estão em andamento.






O 2º Sargento Renato Cardoso morreu a caminho do trabalho, durante uma tentativa de assalto no Rio (Foto: Bruno Albernaz / G1)



O secretário da Segurança do Rio de Janeiro, Richard Nunes, determinou rigor na apuração das mortes dos policiais, cuja investigação está a cargo da Divisão de Homicídios, informa a pasta. "A secretaria realiza junto ao Gabinete de Intervenção Federal estudos para a proposta de mudanças na legislação com o objetivo de coibir a violência contra policiais."


São Paulo também fica em segundo lugar no número absoluto de policiais mortos. Foram 60, quase a metade do total de mortos no Rio. Diferentemente do caso registrado na capital fluminense, a morte do cabo Jair de Lima Rodrigues em São Paulo aconteceu durante seu trabalho. Sua viúva, Susana Rodrigues, conta que ele foi baleado durante uma ocorrência.


A morte, que aconteceu no dia 5 de abril de 2017, já completou mais de um ano, mas a dor e o luto permanecem.

“Até hoje ainda choro. Evito chorar na frente do meu filho porque ele não gosta. Mas ainda choro muito. A falta dele… Ele era bem presente. Era bem família”, diz Suzana Rodrigues, viúva do cabo Jair Rodrigues.


A SSP diz que a morte do policial militar é investigada por meio de inquérito policial, em andamento pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).






Foto mostra casamento de Suzana e Jair; cabo foi morto a tiros durante o trabalho (Foto: Glauco Araújo/G1)



Falta de padronização e transparência



O levantamento feito pelo G1 durou mais de um mês e meio. Os dados foram solicitados via Lei de Acesso à Informação (sob a mesma metodologia utilizada nos anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública) e também foram pedidos às assessorias de imprensa das secretarias da Segurança. O resultado: informações desencontradas e incongruentes.


Em Alagoas, por exemplo, o comando da PM enviou por meio da Lei de Acesso a seguinte resposta à pergunta sobre o número de pessoas mortas pela PM em serviço: “Nada registrado”. Já a assessoria da secretaria informou o dado: 117 vítimas.


A situação não foi muito diferente no Rio de Janeiro. A assessoria de imprensa da Polícia Militar afirmou que houve 80 mortes de policiais militares na ativa fora de serviço em 2017. Já o dado enviado pela Lei de Acesso à Informação, em resposta ao 2º recurso formulado pelo G1, foi outro: 92 mortes. O Instituto de Segurança Pública (ISP) e a PM informam que usam metodologias diferentes para chegar aos números.


No Espírito Santo, ocorreu o contrário: a assessoria passou que eram 13 as vítimas mortas por policiais. O dado via Lei de Acesso, no entanto, se revelou bem maior: 39. A explicação dada, depois, pela secretaria foi que o primeiro dado não comportava os oficiais de folga.


Em Roraima, a informação passada pela assessoria era a de que nenhum policial militar fora de serviço havia morrido. Mas, via LAI, o dado também foi outro: um PM morto em 2017. Houve algo parecido no Amapá. O dado passado de 56 pessoas mortas pela polícia contrastou com o enviado pela Lei de Acesso dias depois: 66.


No Rio Grande do Norte, a resposta dada pela LAI também foi diferente da enviada pela assessoria em relação aos policiais mortos: 18 e 12, respectivamente. O primeiro número, no entanto, incluía PMs aposentados (esclarecimento que só foi feito após questionamento do G1).



Em alguns casos, o mesmo pedido, feito da mesma forma, foi respondido, sem explicação, de forma diferente. Foi o que aconteceu na Bahia. O G1 pediu os dados seguindo o padrão metodológico utilizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que, por sua vez, fez a mesma solicitação para a publicação do anuário no fim do ano. O G1 recebeu um número, e o Fórum, outro.


O mesmo aconteceu em Pernambuco. Após ser questionada sobre as diferenças nos dados recebidos pelo G1, a assessoria de imprensa corrigiu as informações para os mesmos números recebidos pelo Fórum, bem mais altos.


O G1 teve de sanar todas essas disparidades para chegar aos dados finais e dar uma confiabilidade maior à estatística.


Em alguns estados, porém, não foi possível comparar os dados porque o pedido da Lei de Acesso à Informação não foi nem sequer respondido. É o caso de Rondônia, onde o requerimento continua em tramitação, sem previsão de resposta. O pedido, no entanto, foi protocolado em 26 de março.


Já o Tocantins, por exemplo, não mandou os números da Polícia Civil mesmo após o prazo ter expirado. Cobrada, a Controladoria Geral do Estado enviou uma nota: “Informamos que, devido à cassação do governador Marcelo Miranda, à posse do governo interino e a várias alterações dos responsáveis pelos setores dos órgãos, o atendimento da solicitação não foi possível ser realizado”.


Em outros dois estados, parte dos dados não foi enviada nem pela assessoria nem pela LAI. Isso significa que o número de vítimas pode ter sido ainda maior.


O que eles dizem:


Mato Grosso do Sul: não enviou os dados de pessoas mortas por policiais civis. O G1 entrou com recurso em 1ª instância via Lei de Acesso para conseguir as informações, mas recebeu a recomendação da própria Ouvidoria de entrar com um segundo recurso, já que os dados não foram disponibilizados
Pernambuco: não informou o número de pessoas mortas por policiais de folga. Os dados constam como “não disponíveis”



Participaram desta etapa do projeto:

Coordenação: Athos Sampaio e Thiago Reis
Dados e edição: Clara Velasco, Gabriela Caesar e Thiago Reis
Produção: Vitor Santana (G1 GO), Affonso Andrade e Henrique Coelho (G1 Rio) e Glauco Araújo (G1 SP)
Roteiro (vídeos): Beatriz Souza, Clara Velasco, Gabriela Caesar, Mariana Mendicelli e Thiago Reis
Edição (vídeos): Sérgio Fernandes
Edição (infografia): Rodrigo Cunha
Design: Alexandre Mauro, Roberta Jaworski e Igor Estrella
Desenvolvimento: Antonio Lima

domingo, 1 de abril de 2018

ONDE OS HERÓIS NÃO TÊM VEZ

 


Gazeta do Povo, versão impressa, em 31/3/2018

 
DIEGO PESSI


“Mas nas ruas sórdidas da cidade grande precisa andar um homem que não é sórdido, que não se deixa abater e que não tem medo. (...) Ele é o herói; ele é tudo. Ele deve ser um homem completo e um homem comum e, contudo, um homem fora do comum. Ele deve ser, para usar um clichê, um homem honrado – por instinto, por isto ser inevitável, sem que ele pare para pensar sobre isso, e certamente sem que ele o diga. Ele deve ser o melhor homem em seu mundo e um homem bom o suficiente para qualquer mundo”.
(Raymond Chandler).

O mundo da experiência humana possui como elementos fundamentais a ordem e o caos. Caos é o domínio da ignorância mesma, o território inexplorado e estranho. É o desespero e horror que sentimos quando profundamente traídos, o lugar onde os sonhos morrem e as coisas desmoronam; é “onde estamos quando não sabemos onde estamos e aquilo que fazemos quando não sabemos o que estamos fazendo”. Em suma: são todas as coisas e situações que não conhecemos nem entendemos. Ordem é o lugar onde o mundo preenche nossas expectativas e desejos, o lugar onde as coisas acontecem da forma que esperamos, onde tudo é certo e ordenado. Cada situação vivida ou concebível é composta por esses dois elementos, pois habitamos eternamente a ordem rodeada pelo caos. Manter um pé naquilo que dominamos e entendemos enquanto exploramos o desconhecido e aprendemos é a maneira de nos posicionarmos de forma segura diante da vida, controlando o terror da existência.

Dentro desse quadro, esboçado pelo Professor Jordan B. Peterson logo no início do estupendo “12 Rules for Life, An Antidote to Chaos”, há uma notável estirpe de indivíduos, que voluntária e corajosamente plantam os dois pés naquele tempo e lugar onde, nas palavras de Peterson, “a tragédia irrompe subitamente e a malevolência revela seu semblante paralisante”. Uma casta guerreira que faz do caos seu “habitat” natural e se dispõe a viver em permanente risco, não por temeridade ou em razão de alguma pulsão autodestrutiva, mas, antes, movida pela sublime vocação ao sacrifício. Refiro-me, obviamente, aos policiais.

Como observa Tim Larkin (“When Violence is the Answer”), “Numa sociedade civilizada, a violência raramente é a resposta. Mas quando ela é, é a única resposta”. Vivemos num mundo repleto de predadores brutais, impermeáveis à própria noção de civilização e capazes de perpetrar atrocidades que sequer são concebíveis para uma mente não criminosa. Tais atrocidades são definidas por Larkin como expressões de “violência associal”, que tem como marcas distintivas: 1) a impossibilidade insuperável de comunicação com o agressor (argumentar com um sociopata faz tanto sentido quanto “discutir com uma bala”); 2) o absoluto desprezo do agressor por qualquer regra de conduta ou consideração de ordem moral; 3) o fato de que o agressor só pode ser detido quando reduzido à incapacidade de agir. Como parar uma força que, investindo furiosamente contra tudo aquilo que represente as mais elementares noções de ordem, está disposta a destruir a própria sociedade, caso isso seja necessário para satisfação de seus apetites bárbaros? A resposta é uma só: lançando mão de uma força ainda maior, capaz de suplantá-la, inclusive pelo uso metódico e legal da violência, em nome da conservação de nosso legado civilizacional. Eis a função do policial, treinado para sobreviver onde reina o terror e diariamente submetido a ambientes hostis e situações violentas que destruiriam a maioria de nós (e que, não raro, custam-lhe a vida). Que tributos rendemos a esses guerreiros em troca de seu sacrifício e heroísmo? É importante que o façamos?

Em obra clássica e fundamental para compreensão da psicologia do combate (“On Killing, The Psychological Cost of Learning to Kill in War and Society”), o Tenente-Coronel Ranger Dave Grossman explica como o reconhecimento público, expresso em paradas, memoriais, condecorações e, principalmente, no suporte e afeto cotidianos da sociedade, é essencial para o combatente, pois sinaliza que o esforço por ele empreendido é valorizado por seus pares, reafirmando o sentido de um sacrifício que, afinal de contas, não foi em vão. Grossman aponta o trágico legado da guerra do Vietnã como um bom exemplo de quão cruel uma sociedade pode ser com seus heróis: os combatentes enviados ao sudeste asiático (a maioria pelo período de um ano) foram recebidos com uma hostilidade sem precedentes no retorno ao País pelo qual lutaram. A falta de suporte e o massacre psicológico infligido aos veteranos do Vietnã custaram a saúde mental de milhares de homens, cujo único crime foi servir à Pátria, fazendo aquilo para que foram treinados. O preço dessa terrível injustiça (apenas tardia e parcialmente reparada) levou o governo americano a rever sua doutrina estratégica, estabelecendo, entre outras premissas, que os Estados Unidos jamais deverão se comprometer numa guerra que não tencionem vencer.

Imagine agora uma guerra que não é travada em algum lugar remoto, mas a partir do quintal de sua casa. Uma guerra na qual você deverá se engajar não pelo período de um ano, mas por toda a vida. Uma guerra na qual não apenas você, mas seus familiares e amigos estarão permanentemente expostos à sanha assassina de um inimigo inescrupuloso, onipresente e invisível, que, ao contrário de você, não está sujeito a qualquer limitação de ordem legal, ética ou orçamentária. Um inimigo que conta com o apoio e simpatia de pessoas que, por obrigação legal, teoricamente deveriam estar a seu lado. Imagine que muitos daqueles por quem você luta não apenas apregoam que se trata de uma guerra perdida e sem sentido, como fazem questão de aviltar seu trabalho e cuspir no sacrifício de seus colegas, exigindo, em coro com o inimigo, nada menos que a extinção da força à qual você dedicou seus melhores esforços. Não é preciso imaginar: essa é a situação do policial no Brasil, dolorosamente simbolizada pelo martírio de Marcos Paulo da Cruz e Caroline Pletsch no último dia 26 de março.

O casal de policiais militares de Santa Catarina gozava férias na cidade de Natal. Identificados por delinquentes durante um assalto à pizzaria onde jantavam, foram sumariamente condenados, sem chance de recurso: Caroline, 32 anos de idade, teve a vida ceifada por um o disparo no peito e Marcos foi gravemente ferido. Uma família destruída. Sonhos esmagados. O futuro roubado, na irremediável perda de tudo aquilo que poderia ser e jamais será. Como de praxe, a execução de policiais não gerou veementes protestos da mídia, não ensejou manifestações histriônicas de celebridades comovidas, tampouco despertou a atenção dos organismos supostamente devotados à causa dos direitos humanos. Trata-se, afinal, de mais uma nota de rodapé, fadada ao ocaso, no interminável inventário da vergonha nacional. Caroline será apenas mais um número na estatística que contabiliza quase três mil policiais assassinados desde 2011 (437 apenas em 2016, contra 64 nos Estados Unidos no mesmo período). Os assassinos? Na improvável hipótese de que seu crime não venha a figurar entre os mais de 90% que sequer são denunciados, deverão responder ao processo em liberdade. Caso condenados, serão soltos após cumprimento de uns poucos anos de prisão (ou de no máximo 3 anos de internação, caso sejam menores de 18 anos), tudo isso, é claro, sob os veementes protestos de doutores e especialistas, que denunciarão esse arremedo de pena como genuína expressão do “punitivismo exacerbado” que assola o Brasil. Uma única certeza: em qualquer hipótese, os assassinos voltarão às ruas em busca de novas presas. Destruirão outras famílias, esmagarão outros sonhos e roubarão o futuro de outras vítimas.

O drama vivido pelas forças policiais brasileiras é um sintoma clamoroso do avançado estágio de degradação moral de nossa sociedade, que, não satisfeita em permitir a imolação dos cordeiros, agora chancela, com sua indiferença, o direito do lobo ao holocausto de seus pastores. Com pilhas de cadáveres e com o sangue dos mártires, pavimentamos a estrada que nos levará ao abismo onde os heróis não têm vez.



DIEGO PESSI é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e co-autor do livro “Bandidolatria e Democídio, Ensaios Sobre Garantismo Penal e Criminalidade no Brasil”.

* Artigo publicado na Gazeta do Povo, versão impressa, em 31/3/2018. Disponível no "site" do jornal a partir de 02/4/2018.