ALERTA: A criminalidade e a violência crescem de forma assustadora no Brasil. Os policiais estão prendendo mais e aprendendo muitas armas de guerra e toneladas de drogas. A morte e a perda de acessibilidade são riscos presentes numa rotina estressante de retrabalho e sem continuidade na justiça. Entretanto, os governantes não reconhecem o esforço e o sacrifício, pagam mal, discriminam, enfraquecem e segmentam o ciclo policial. Os policiais sofrem com descaso, políticas imediatistas, ingerência partidária, formação insuficiente, treinamento precário, falta de previsão orçamentária, corrupção, ingerência política, aliciamento, "bicos" inseguros, conflitos, autoridade fraca, sistema criminal inoperante, insegurança jurídica, desvios de função, disparidades salariais, más condições de trabalho, leis benevolentes, falência prisional, morosidade dos processos, leniência do judiciário e impunidade que inutilizam o esforço policial e ameaçam a paz social.

sábado, 17 de dezembro de 2011

DELEGADO SE RECUSOU A AUTUAR FLAGRANTE REALIZADO PELA PM


EM LADOS OPOSTOS. Delegado se recusou a autuar suspeito preso - ZERO HORA 17/12/2011

O segundo ato de confronto ocorreu em Gravataí. Ao conduzir sete suspeitos de tráfico de drogas detidos durante o cumprimento de 32 mandados de busca e apreensão na quinta-feira, policiais militares do município entraram em rota de colisão com os delegados da cidade.

Considerando que houve abuso dos brigadianos que conduziram os presos para um sítio para identificação antes de levá-los à delegacia, o delegado plantonista Júlio Fernandes Neto decidiu não autuá-los em flagrante.

Entre os problemas observados pelo delegado estariam o fato de os suspeitos, detidos no início da manhã, terem sido apresentados próximo ao meio-dia e à tarde.

– Eles não podem ficar tanto tempo com um preso, isso é ilegal. Levaram os suspeitos para um sítio para apresentá-los à imprensa, sem conhecimento do delegado – disse o delegado regional Leonel Carivali.

Segundo o policial, o fato expõe uma antiga intenção da Brigada Militar de assumir competências que são da Polícia Civil, como a investigação.

Para o comandante do Policiamento Metropolitano, coronel Silanus Melo, a ação da BM estava respaldada pelo Judiciário.

– Cumprimos os mandados de busca. Observamos o que vemos na rua e encaminhamos ao Ministério Público. Os promotores fazem os pedidos quando julgam necessário, e nós cumprimos – defendeu.

LEIA O DESPACHO DADO PELO DELEGADO.

DESPACHO:

Ref. Oc. Policial 3340/2011/100404
Vistos, etc.
...
Cuida-se de operação patrocinada pela Força-tarefa do Ministério Público Estadual juntamente com o Serviço de Inteligência da Brigada Militar desta Comarca. Foram cumpridos, ao total, trinta e duas ordens de busca e apreensão, as quais foram requeridas pelo parquet após investigação criminal realizada de forma conjunta pelas duas instituições. Não houve, pelo que se pode apreender, participação da Polícia Judiciária nos atos investigatórios.

Nesse sentido, basta a leitura da cópia de uma representação de membro do Ministério Público desta comarca a que teve acesso o signatário. Nesta, o agente ministerial menciona uma certidão da PM2 (Serviço de Inteligência da Brigada Militar) como embasamento para um requerimento de busca domiciliar (cópia anexa aos autos). Evidente, portanto, que a BM, de forma reiterada, pratica no município de Gravataí atos investigativos para os quais não possui legitimidade de acordo com a Carta Política vigente, o que de todo é corroborado por declarações de policiais militares ouvidos nesta data (termos de declarações em anexo).

Mas não é só. A questão é tormentosa em muitos outros sentidos. Isso porque, não obstante haver nos autos indicativos do cometimento de várias infrações penais, o ordenamento jurídico-constitucional pátrio restou amplamente vulnerado. Em razão disso, todos os atos praticados foram inquinados de vício de nulidade.

Inicialmente, salta aos olhos a ausência dos requisitos de cautelaridade no que concerne à segregação em flagrante. A operação, como se vê nas declarações colhidas, ocorreu nas primeiras horas do dia (por volta das 06 horas.), transcorrendo lapso de aproximadamente quatro horas entre a detenção dos suspeitos e a apresentação da primeira guarnição nesta DPPA. Nesse particular, é preciso destacar que a última apresentação ocorreu por volta da 17:00 horas, quando já transcorridas dez horas do início das diligência. Isso, sem que se saiba ao certo por quanto tempo os suspeitos permaneceram em custódia da Polícia Militar.

Ora, se a liberdade provisória é alçada à condição de princípio em nosso ordenamento (artigo 5º, LXVI, da CR), somente se admitindo a prisão, por força de flagrante, acaso configuradas as moduladoras do artigo 302 do Código de Processo Penal Brasileiro, a primeira providência dos responsáveis por qualquer prisão deve ser a apresentação à Autoridade de Polícia Judiciária competente.

Se assim, não ocorrer, como poderá ser imediatamente comunicado o Poder Judiciário acerca da prisão, como os familiares ou pessoa indicada pelo encarcerado terão ciência da privação de sua liberdade e, mais, quem lhe informará da garantia do nemo tenenetur se detegere? Em outras palavras, de ue forma serão implementadas as garantias penais fundamentais esposadas no artigo 5º, LXII e LXIII, da Carta Republicana, que possuem eficácia normativa e aplicação imediata, nos exatos termos do artigo 5º, § 1º, da mesma Carta Política e da mais abalizada doutrina. Haveria alguma espécie de permissivo que isentasse, nas investigações conduzidas pelos agentes ministeriais com o auxílio do Serviço de Inteligência da PM, o respeito às cláusulas pétreas acima elencadas?

Tal questionamento se impõe até mesmo em razão da postura adotada pelo Comando da BM em Gravataí durante o longo lapso temporal transcorrido entre a detenção dos suspeitos e sua apresentação nesta Delegacia de Polícia. Como o signatário pode aferir durante a instrução do feito, mesmo antes da apresentação dos investigados à Autoridade constitucionalmente competente para decidir quanto à privação cautelar de sua liberdade, foi proferida pelos milicianos uma entrevista coletiva. Nesta, em evidente ofensa à garantia da presunção de não culpa (artigo 5º, LVII, CF) e aos direitos de personalidade dos conduzidos (artigo 5º, X), sua imagem foi exposta à opinião pública, o que de todo seria questionável ainda que existisse contra os mesmos sentença penal condenatória com trânsito em julgado. Afinal, com a devida vênia ao trabalho do titular da ação penal, os presos, indiciados e condenados não perdem sua condição de seres humanos, cuja dignidade merece tutela constitucional, nos termos do metaprincípio elencado pelo artigo 1º, inciso III, da Carta Cidadã como fundamento de nossa República (dignidade da pessoa humana).

Nesse contexto, a injustificada demora da PM em apresentar os custodiados à Autoridade Policial plantonista não apenas viola um sem número de garantias constitucionais, mas assume foros de abuso de autoridade, nos moldes do artigo 4º, alíneas “a” e “b”, da Lei 4898/65. Qualquer outra interpretação além de afrontar todo o regime de liberdades trazido pela Constituição, atribui à Polícia Militar poderes que exorbitam àqueles conferidos aos Delegados de Polícia e aos próprios membros do Poder Judiciário. Isso porque, a nenhuma destas autoridades é permitido, mesmo no exercício de sua competência, privar a liberdade individual sem que sejam respeitadas as garantias penais fundamentais.

E nesse ponto, inarredavelmente, exsurge um vício de ainda maior gravidade, o relativo à ilicitude da prova.

Partindo do vértice de nosso ordenamento, temos que a Constituição, em seu sentido orgânico, é o foco de validade de todas as demais normas do sistema. Nela, sob um prisma pós-positivista, estão delimitados a estrutura do Estado, os meios de exercício e os limites do poder estatal, que de todo refletem o conteúdo ético da Carta Magna. Daí, o reconhecimento pacífico na melhor doutrina contemporânea dos princípios da supremacia e da eficácia normativa da constituição, bem como da vedação ao retrocesso em matéria de direitos fundamentais, todos surgidos no pós-segunda grande guerra como expressão do pensamento neoconstitucionalista, cujo consectário é o garantismo penal.

Referido pensamento assenta como regra básica da hermenêutica constitucional, que todos os operadores do direito, ao tratar dos direitos fundamentais, devam agir sempre de modo a conferir-lhes a máxima efetividade. Em sentido oposto, portanto, ficam afastadas interpretações que, elastificando normas jurídicas, busquem ampliar a restrições dos mesmos direitos fundamentais quando o próprio constituinte assim não o fez.

É o que, lamentavelmente, se verifica no caso em tela. A liberdade, ao lado da vida, constitui um dos valorais fulcrais do ser humano. Não por outro motivo, a constituição da República delimitou as atribuições dos diversos órgãos envolvidos na persecução penal, estruturando o chamado sistema acusatório. Isso, para, divindo a atividade persecutória entre diferentes autoridades, evitar que se instalasse um verdadeiro “Estado de Polícia, com a excessiva concentração de poder, o que favoreceria o cometimento de desmandos em detrimento do jus libertatis.

Por força disso, aos Delegados de Polícia Civil e Federal foi atribuída a posição de autoridades de Polícia judiciária, na missão de presidir procedimentos investigatórios, aos membros do Ministério Público conferiu-se a titularidade da ação penal e ao Judiciário a função de dizer o direito, neste embate permanente entre a pretensão punitiva e o estado de liberdade. Referido sistema possui uma lógica em muito similar ao de freios e contrapesos, pois a pluralidade de órgãos envolvidos, naturalmente, inibe abusos. Cada qual, na esfera de sua atribuição, atua como verdadeiro “filtro” de legalidade no que concerne à persecução penal.

Dentre os vários operadores citados, contudo, não se vislumbra a Polícia Militar. Esta tem como atribuição a promoção do policiamento ostensivo, mas jamais a prática de atos investigativos persecutórios relativos a crimes comuns (artigo 144, § 4º, in fine, da CF), que são reservados à Polícia Judiciária. Invocar qualquer sorte de doutrina ou princípio para legitimar a investigação de crimes comuns pela BM importa interpretar extensivamente o ordenamento jurídico para restringir o direito fundamental à liberdade. E, no magistério de J.J. Gomes Canotilho, isto constitui vedado retrocesso constitucional, configurando recurso hermenêutico que pretende diminuir garantias que são conquistas de toda a humanidade, ao longo de um lento e pesaroso processo de evolução do pensamento humano.

Muitas guerras e revoluções foram travadas, muitos deram suas vidas para que, pouco a pouco as garantias acima citadas fossem incorporadas, como direitos humanos de primeira geração, ao arcabouço da ciência jurídica. Daí porque não é admissível que, agora, a pretexto de combater a criminalidade, o Serviço de Inteligência de Polícia Militar com a chancela do parquet, pretenda violá-las, sob o falacioso argumento da defesa do interesse público.

Inexistindo infração de competência da Justiça Militar Estadual, a justificar a instauração de IPM, todos os atos investigatórios praticados pela BM são, irremediavelmente ilegítimos. O constituinte originário não atribuiu às Polícias Militares a competência para praticar a função de polícia judiciária relativamente aos crimes de competência da Justiça Comum. A questão, portanto, é bem simples: até que se promulgue Emenda Constitucional modificando as atribuições dos órgãos de segurança do Estado, qualquer argumento invocado para atribuir aos milicianos a função de investigar crimes não militares constitui interpretação extensiva do Código de Processo Penal, em cujo cerne está a indevida restrição de diversos direitos fundamentais (especialmente o de liberdade).

Assim, a prova não apenas é ilegítima, pois violadora da lei penal adjetiva, mas ilícita porque produzida no exercício de atribuição constitucional que a Polícia Militar não possui, em evidente tentativa de retrocesso quanto à tutela do direito constitucional de liberdade.

Simplificando, partindo-se da premissa de que o constituinte originário vedou no âmbito penal a utilização da prova ilícita (artigo 5º, LVI, da CF/88) e, tendo em vista que o Pretório Excelso, em sua jurisprudência, assentou a teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree), qualquer crime comum cuja investigação tenha sido realizada pela polícia militar padece de vício de nulidade insuperável. Todos os atos persecutórios a partir destes praticados, tais como pedidos e concessão de cautelares, cumprimento de diligências e autuações em flagrante, serão ilícitos por derivação e, portanto, inúteis ao processo.

Daí porque, em que pese a materialidade delitiva que se vislumbra e, os demais indicativos de autoria, não há, no entendimento do signatário, justa causa que sustente a lavratura de auto de prisão em flagrante.

Como ensina a Professor Ada Peligrini Grinover, no processo penal, quaisquer atos praticados em ofensa à Constituição padecem de vício de nulidade absoluta e, portanto, insanável. É o que se vislumbra no presente caso: a afronta a incontáveis garantias fundamentais a pretexto de combater o crime. O resultado, ao revés do pretendido, produz uma sucessão de atos nulos, que não legitimam o agir estatal, mas o desqualificam, tornando-o imprestável para o embasamento de quaisquer providências na seara penal. Antes de fazer Justiça, tais atitudes promovem a impunidade.

Tal entendimento não é isolado e encontra eco não apenas na Polícia Civil Gaúcha, mas também no Poder Judiciário do Estado de São Paulo, como se pode ver do precedente citado na pertinente decisão da lavra do Delegado Rafael de Souza Lopes, a seguir transcrita:

“Ref.: Ocorrência nº 31036/2011/152010

Foram apresentadas, na noite de hoje, nesta DPPA, as pessoas elencadas na ocorrência policial em anexo, em razão de diligências realizadas pela Brigada Militar em cumprimento de Mandado de Busca – da mesma forma em anexo –, que resultaram na apreensão dos objetos referidos no Auto de Apreensão vinculado à citada ocorrência. O Mandado de Busca em questão foi deferido pelo Poder Judiciário em razão de requerimento do Ministério Público, que embasou o pedido em investigação realizada pelo serviço de inteligência da Brigada Militar.

Diante dos fatos, mostra-se necessária uma análise dos dispositivos legais atinentes ao caso.

Conforme reza a Constituição Federal, ao tratar do tema “Segurança Pública”:

“Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.” (CF, art. 144, § 4º).

“Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; (...)” (CF, art. 144, § 5º).

Acrescente-se o que dispõe o Código de Processo Penal:

“Incumbirá ainda à autoridade policial:

(...)

II – realizar as diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público;” (CPP, art. 13, II)

Da leitura dos citados dispositivos, depreende-se que é atribuição da Polícia Civil o cumprimento das diligências que visem a apurar infrações penais que não sejam militares, bem como se trata de responsabilidade da citada instituição a investigação das mesmas infrações penais. Saliente-se que não há na ocorrência ou no mandado sequer menção a qualquer infração penal militar, ou seja, é pelo menos estranha a atuação do serviço de inteligência da Brigada Militar na dita operação.

Ressalte-se, para que se afaste qualquer argumentação que defenda a legalidade do procedimento adotado, que o conceito de “autoridade policial” a que se refere o Código de Processo Penal não deve de forma alguma receber interpretação que venha a abranger autoridade outra que não seja o Delegado de Polícia.

Nessa senda, irretocáveis são as palavras do Delegado Daniel Trindade, em despacho proferido em situação semelhante à ora tratada:

‘ Trata-se a Autoridade Policial de um agente político estatal, que exerce a funções de Polícia Judiciária e investigativa, a quem incumbe o dever de apurar as infrações penais e sua respectiva autoria.

No âmbito estadual, em conformidade com o art. 144, par. 4º da Constituição Federal, a função de Polícia Judiciária é de atribuição “exclusiva” da Polícia Civil (no âmbito dos estados da federação), dirigida por Delegados de Polícia de carreira, com formação específica para avaliar todos os aspectos jurídico-penais da investigação criminal.

Convém deixar claro que autoridade policial é nomenclatura que se atribui à figura do Delegado de Polícia (Civil ou Federal), no exercício de Polícia Judiciária e Investigativa. Inconstitucional, portanto, qualquer ingerência investigativa por parte da Polícia Militar. A Constituição Federal reserva à Polícia Militar, o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (art. 144, par. 5º da CF), jamais a realização de investigações criminais, uma vez que estas podem resultar o indiciamento de pessoas e apreensão de propriedades privadas, tarefa exclusiva do Delegado de Polícia. Aliás, a ingerência investigativa pela Polícia Militar configura, a depender do caso concreto, o tipo penal de usurpação de função pública, e, eventualmente, abuso de autoridade.

O ordenamento jurídico brasileiro é formulado de maneira que prestigie o devido processo legal, o sistema acusatório e a persecução criminal garantista, realizando uma divisão de atribuições entre seus diversos órgãos, sendo que cada Instituição goza de seu papel fundamental na busca pela Justiça e pelo Bem Comum (objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, no art. 3º, inciso IV da CF).

No que tange aos crimes comuns, a atribuição constitucional da Polícia Militar é estritamente preventiva e repressiva, ou seja, limita-se a atuar na prevenção da conduta delituosa. Aliás, quando da prática da infração penal, deve a Polícia Militar levar o fato imediatamente ao conhecimento da Autoridade Policial, a quem incumbirá tomar as providências constitucionais e legais que o caso necessitar. Ao fixar o direito a investigação à Autoridade Policial, pretendeu o legislador evitar o retorno paulatino ao Estado de Polícia, no qual o resguardo da segurança pública admitia a adoção de qualquer instrumento por parte do Estado.

Qualquer tentativa de ingerência nas atribuições da Polícia Judiciária deve ser rechaçada, pois, indiscutivelmente, configura um retrocesso no que tange à tutela das garantias individuais e aos direitos humanos e ofensa ao efeito cliquet (princípio da proibição do retrocesso) dos direitos e garantias fundamentais.

Não nos filiamos à posição de que, em prol da defesa da segurança pública e do bem estar social, as forças policiais são autorizadas à adoção de qualquer medida, pois, caso contrário, em pouco tempo, voltaríamos a admitir procedimentos policiais arbitrários em nosso ordenamento.

Há alguns anos, os juristas brasileiros passaram a enfrentar com seriedade a questão das provas ilícitas, abraçando, mesmo que de forma tardia, a proteção constitucional inscrita no artigo 5º, inciso LVI da Magna Carta.

Uma prova obtida com o claro desrespeito às normas de competência constitucionais e legais, oriunda de uma investigação ilegal realizada pela Polícia Militar, em tese, pode configurar o crime de usurpação de função pública e, obviamente, maculará todo o processo penal.

Após a reforma realizada pela Lei nº 11.690 no ano de 2008, o Código de Processo Penal passa a vedar qualquer tipo de prova ilícita (artigo 157 do CPP), bem como aquelas que destas derivem (artigo 157, par. 1º do CPP), cristalizando um posicionamento uníssono da jurisprudência.

A não admissão das provas derivadas das ilícitas é a positivação da teoria norte-americana dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree theory), ou seja, o vício antecedente da prova transportar-se-á para as evidências subsequentes, maculando-as, tornando-as imprestáveis para o Processo Penal.

Pelo vigor do tema, transcreve-se já reconhecido, consolidado e reproduzido posicionamento do Supremo Tribunal Federal:

‘São Constitucionalmente inadmissíveis os meios probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por efeito de repercussão causal" (...) "A Constituição da República em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, ART. 1º), qualquer prova cuja obtenção pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüê ;ncia, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do "male captum, bene retentum.’ (STF - 2ª Turma - RHC 90.376-RJ, Rel. Min. Celso de Mello - 03/04/2007).

Delegado de polícia imparcial: defendemos a garantia de que um Delegado de Polícia Imparcial, autoridade distinta do órgão acusatório, presidindo as investigações policiais, garante a imparcialidade da prova colecionada, prestigiando o princípio da verdade real e o princípio da dignidade da pessoa humana.

Pela relevância e clareza, transcrevemos decisão proferida pela Corregedoria do Poder Judiciário do Estado de São Paulo, nos Autos n. 253/2002, em que se analisou o conceito de autoridade policial:

‘Vistos, etc.

A Polícia Militar não é órgão censor da Polícia Civil e a recíproca é verdadeira. As co-irmãs são instituições destinadas à manutenção da segurança e da ordem pública, cada uma delas com funções específicas designadas na lei, sem possibilidade de conflitos no âmbito de suas atuações, mercê da perfeita e legal divisão de tarefas. No caso dos autos, que entendo como representação do Comandante do 37º BPMI, Senhor Tenente Coronel PM Miguel Pinheiro, em face de atos de Polícia Judiciária de Delegado de Polícia de Rio Claro, sob autoridade administrativa do Dr. Joaquim Alves Dias, consta que em casos de prisão realizada por militares, quando apresentado o infrator à autoridade policial esta teria colocado o infrator em liberdade sem lavrar o flagrante, p ondo a perder o serviço da Policia Militar, em prejuízo da sociedade como um todo. Sem dúvida alguma louvável a preocupação do dinâmico Comandante Tem. Cel. Miguel Pinheiro em proteger a sociedade, de cujo corpo todos nós participamos. Mas, acima de qualquer outro argumento, somos uma sociedade organizada, em que, como já posto em linhas atrás, têm-se funções específicas, atribuídas a cada órgão, instituição social, colocado a consumo da atividade social e como tal assim prestigiado. Assim, colocada a questão, fácil inferir, por via de conclusão, que a autoridade policial, por excelência e na forma de nossa estrutura legal, que suporta a organização da Secretaria de Segurança Pública, é o DELEGADO DE POLÍCIA. A ele incumbe, mercê de sua formação jurídica e por exigência de requisitos para o ingresso na carreira policial, apreciar as infrações penais postas por seus agentes (policiais, genericamente entendidos), sob a luz do Direito, máxime, em se cuidando de Segurança Pública, do DIREITO PENAL. Sempre que tiver conhecimento de uma infração penal o Delegado de Polícia (autoridade policial por excelência) deve fazer uma avaliação, a fim de visualizar se se cuida fato típico, como espelha a Teoria da Tipicidade, o “TATBESTAND” do Direito Alemão, ou não, daí procedendo de acordo com o que a lei regrar. Do mesmo modo, concluído que se cuida de fato típico, incumbe ao Delegado de Polícia, por via da formulação de um juízo de valor, decidir se se trata de prisão em flagrante, em quase-flagrante (flagrante próprio e impróprio), flagrante preparado, ou, se, efetivamente, não houve flagrante. A formulação desse juízo de valor não tem regra matemática a ser seguida. Cuida-se de uma avaliação subjetiva, realizada com os supedâneos do conhecimento jurídico e da experiência, amealhada ao longo da carreira policial. É conhecimento personalíssimo e ao abrigo de qualquer influência externa. Corolário do exposto não é falho afirmar-se que entregue o fato à Autoridade Policial, por qualquer agente de sua autoridade, aquela primeira etapa do procedimento administrativo policial está exaurida. E, se é cômodo afirmar que o caso foi levado ao conhecimento da autoridade policial, mais cômodo ainda deve ser, após, não se fazerem ingerências no âmbito de outras atribuições, como a respeito verberaram todos os Meritíssimos Juizes de Direito e Promotores de Justiça que atuaram neste procedimento (fls. 15 a 22 e 24 a 35), cujos argumentos encampo para subsídios de minhas conclusões. Entendo, com o abono das manifestações expendidas nestes autos, pelos meus colegas, que a presente representação só teria sentido se atribuído fosse fato criminoso à autoridade policial, o que, me parece, efetivamente, não houve, e nem foi propósito tal desta representação ao Juiz de Direito, Corregedor da Polícia Judiciária da Comarca de Rio Claro. Repito, para bem cumprir sua missão é dever do Delegado de Polícia proceder a uma formalização, mesmo que precária de tipicidade, pois a definitiva incumbe ao Ministério Público, do fato criminoso a si colocado, para daquela tipicidade precária tirar efeitos jurídico-processuais, bem assim decidir se é infraç&atil de;o da qual o agente se livra solto, mediante fiança, ou sem direito a fiança (inafiançável), ou se se cuida de crime hediondo ou qualquer outro, para pedir a segregação temporária do indiciado se julgar necessário, caso não opte pela flagrância do delito. Todo esse complexo desenrolar subjetivo está afeto ao Delegado de Polícia, em cuja atividade funcional está a salvo de qualquer interferência, mesmo do Ministério Público, órgão de fiscalização externa da Polícia Civil (C.F./88 e L.O.M.P.), caso não haja, na espécie, a prática de ilícito (advocacia administrativa, favorecimento pessoal, corrupção etc.) de parte da autoridade policial atuante. Para completar o raciocínio aqui desenvolvido é oportuno colocar que na estrutura da Secretaria de Segurança Pública, as autorida des administrativas hierarquizadas são o Governador do Estado, seu Secretário da Segurança Pública e o Delegado de Polícia Judiciária. Todos os demais integrantes dessa complexa estrutura são agentes da autoridade policial que os doutos chamam de “longa manus”, em substituição ao particípio presente do verbo agir para tal fim substantivado. Assim, são agentes da autoridade policial judiciária, que é o Delegado de Polícia, toda a Polícia Militar, desde seu Comandante Geral até o mais novo praça e todo o segmento da organização Polícia Civil, bem assim o I.M.L., I.P.T etc. e nenhuma dessas categorias podendo influenciar os atos da autoridade policial, enquanto “atos de polícia judiciária” sujeitos a avaliação jurídico-subjetiva. Ademais, se o ilícito foi apurado via “persec utio criminis” pela instauração de inquérito policial, iniciado por portaria e não por ato de prisão em flagrante, essa situação não retira, jamais, a nobreza do ato do policial militar que, despojando-se da própria vida cumpre o seu altruístico dever de defender a sociedade, aliás o que a gloriosa Polícia Militar do Estado de São Paulo, tão bem sabe fazer. Ante o exposto e não havendo in casu, ilícito algum de interesse desta Corregedoria, arquivem-se os autos, dando-se ciência desta decisão ao Sr. Tenente Coronel PM Miguel Pinheiro, dinâmico Comandante do 37º B.P.M.I. do Rio Claro e ao Dr. Joaquim Alves Dias, competente Delegado Seccional de Polícia de Rio Claro. Rio Claro, 14/01/2003. (Juiz de Direito, Júlio Osmany Barbin).’

Dessa forma, entende-se que o fato de a investigação de crime não militar ter sido conduzida pela Brigada Militar, bem como o cumprimento de Mandado de Busca em crime não militar ter sido realizado por esta instituição são circunstâncias que tornam toda a prova coletada ilícita, o que por si só afasta a possibilidade de prisão em flagrante revestida de legalidade.

Ademais, o próprio mandado já se mostra viciado, tendo em vista que restringe o seu cumprimento, que deveria dar-se “somente pela Polícia Militar”, distorcendo atribuição prevista na Constituição Federal, já que, como já referido, não há crime militar algum relacionado aos fatos em tela. Ora, ainda que houvesse envolvimento de Policial Civil nos crimes – o que, saliente-se, não é o caso –, deveria o Mandado para cumprimento ser encaminhado à Delegacia de Polícia Regional, ou mesmo à Corregedoria da Polícia Civil, mas JAMAIS à Polícia Militar, cujas atribuições constitucionais não abrangem a apuração de infração penal que não seja de cunho militar.

Além disso, é sabido que a nossa Brigada Militar é instituição imprescindível ao Estado Democrático de Direito, já que é responsável pelo policiamento ostensivo, função esta que fica seriamente prejudicada quando os seus policiais são utilizados em operações de investigação e cumprimento de Mandado de Busca, o que significa menos policiais nas ruas prontos a atender às necessidades urgentes da população.

Por todo o exposto, deixo de autuar os apresentados em flagrante, apreendendo, no entanto, os bens aqui apresentados, para que estes estejam à disposição da Autoridade Policial com atribuição para instaurar inquérito em razão destes fatos, caso entenda cabível.”

A decisão colacionada, como se vê, complementa com perfeição tudo que até então se disse, tratando com propriedade da violação do sistema acusatório e da ilegalidade da atuação invetigatória da Polícia Militar no que concerne à apuração de crimes de competência da Justiça Comum.

Interpretação diversa importaria no chancelamento pelo firmatário de todos os atos busivos até então noticiados. Não é esta a postura que, nos lindes de nosso sistema constitucional, se espera de uma autoridade pública, detentora de parcela tão significativa do poder estatal: o poder de privar a liberdade individual.

Tanto pelos fundamentos jurídicos lançados, como por imperativo ético, aos Delegados de Polícia cumpre agir como verdadeiro filtro no mecanismo de persecução, promovendo os direitos fundamentais de todos os envolvidos no fato-crime.

Qualquer outra posição, com a vênia devida aos entendimentos divergentes, apequena a relevância das atribuições da polícia judiciária e deve ser rechaçada, não por questões institucionais, mas pelo evidente aviltamento do Estado Democrático de Direito.

Por derradeiro, é preciso destacar que apenas um dos trinta e dois mandados cumpridos foi apresentado ao firmatário. Tal omissão reforça o coro de irregularidades que se pôde vislumbrar, indicando que a BM tem ciência que sua atividade investigativa se deu à margem da legalidade. Tanto é assim, que nenhum dos policiais da PM2, responsáveis pelas “investigações” que antecederam as buscas integravam as guarrnições que nesta delegacia compareceram apresentando os suspeitos. Como sói acontecer, PMs de outros municípios, ostensivamente fardados, foram utilizados como artifício para dissimular a investigação de crimes comuns pelo serviço de informação da BM. Este é apenas mais um aspecto que denota a ilegitimidade de toda a atividade persecutória indevidamente realizada pelos milicianos dentro do espectro de competência da Justiça Comum.

Por tais razões, deixo de autuar em flagrante os conduzidos, determinando o registro de ocorrência policial, apreensão de todo o material apresentado pela BM e oitiva dos responsáveis pela diligência.

A seguir, remeta-se todo o expediente para a apreciação da Autoridade Policial com competência circunscricional para apuração.

Encaminhe-se cópia ao Senhor Diretor da 1ª DPRM, com curso à DAJ e à Chefia de Polícia, conforme orientação superior.

Cumpra-se

Gravataí, 15 de dezembro de 2011.

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Sem entrar no mérito legal apontado com muita propriedade pelo Delegado que assinou o despacho, o papel investigativo realizado pela BM deveria ser discutido junto com as operações ostensivas e as volantes da policia civil, que na prática mostram a necessidade destes dois segmentos interagirem no desempenho policial. Jamais uma polícia no mundo será operante se estiver segmentada em corporações de diferentes estruturas, cultura e regime. A polícia só será eficiente se tiver equipes investigativa, ostensiva e pericial trabalhando em harmonia salarial e funcional, sob o mesmo comando, princípios, valores e regime jurídico.

O Brasil, diferentemente do restante do mundo, mantém polícias federativas divididas no ciclo policial, restando a investigação na PC, a ostensividade na PM e a perícia no Instituto Geral de Perícias (aqui no RS). Um segmento para cada organização diferente e autônoma criando conflitos e dependência burocrática e morosa. Entretanto, a mesma filosofia divisionista não atinge a Polícia Federal que cada vez mais vem aprimorando o ciclo completo com a especialização de tropas de contenção, ações operacionais nas fronteiras e manutenção de sua equipe de peritos, o tem aumentado ainda mais sua imagem de efetividade e credibilidade junto aos Poderes e ao povo.

Esta na hora dos congressistas criarem uma lei estabelecendo o ciclo completo para as polícias estaduais de modo a aumentar a eficácias destas polícias. Polícia fracionada não funciona. É bom lembrar que discordo das tais forças tarefas, entre elas a do MP. O MP deveria criar suas equipes com agentes próprios.

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