O GLOBO 23/10/13 - 07:58
Entenda como funcionou a atuação dos policiais militares no crime.
Ministério Público revela detalhes do assassinato de Amarildo. Nova denúncia contra acusados de matar pedreiro incrimina 25 PMs no total
ELENILCE BOTTARI
ELENILCE BOTTARI
O GLOBO
Atualizado:23/10/13 - 8h12
Amarildo de Souza foi torturado até a morte, de acordo com depoimentos de PMs que trabalharam na noite Agência O Globo / Reprodução
RIO — O medo de morrer levou um policial militar da UPP da Rocinha a romper o silêncio que cercou de sombras, por cerca de três meses, os momentos de horror que marcaram a agonia e a morte do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza. Ao longo desse tempo, até revelar em detalhes o que aconteceu nos 40 minutos em que a vítima foi torturada dentro de um contêiner, ele foi perseguido por colegas de farda. Um dia, ao chegar ao trabalho, seu armário estava pichado com a inscrição “X-9”, dedo-duro na gíria policial. Com medo de ter o mesmo destino de Amarildo, o PM acabou por contar tudo que viu e ouviu no dia 14 de julho, quando o morador da Rocinha foi sequestrado. As revelações compõem um minucioso quadro do crime apresentado nessa terça-feira durante uma entrevista coletiva de promotores no Ministério Público estadual, encerrada com a notícia de que mais 15 PMs seriam denunciados, totalizando 25 acusados do brutal assassinato.
Com a prisão do major Édson dos Santos, ex-comandante da UPP, e de outros nove policiais militares no último dia 4, o PM, cuja identidade é preservada, resolveu revelar à polícia que a sede da unidade havia sido transformada num local de tortura, tão violenta quanto a do tráfico que dominou por tantos anos a comunidade. Ao decidir não sustentar mais a versão que, segundo ele, era imposta pelo major, o policial convenceu quatro PMs mulheres, que também estavam lá, a fazerem o mesmo. Elas prestaram depoimento no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco). Duas haviam sido obrigadas a ficar em um outro contêiner, bem perto de onde Amarildo era agredido. Ouvindo a tortura, elas entraram em pânico, caíram em prantos e tentaram deixar o local, mas foram impedidas, de acordo com o inquérito, por outros policiais. O relato é de que uma delas tapou os ouvidos para não escutar os gritos de dor e pedidos de ajuda de Amarildo.
Ainda de acordo com a denúncia, logo após a morte do morador da Rocinha, foi montada uma farsa para atribuir o crime ao tráfico. O desaparecimento do ajudante de pedreiro, no entanto, ganhou as redes sociais, onde foi criado e ganhou força um movimento que correu o mundo com a pergunta: “Cadê Amarildo?”.
— Foi o temor em relação ao comandante e a seu grupo que fez com que tantos policiais calassem por tanto tempo um fato tão grave. É impressionante o poder de intimidação deles — afirmou a promotora de Justiça Carmen Eliza Bastos de Carvalho, que, junto com o coordenador do Gaeco, Gláucio Cardoso da Conceição, e o promotor Daniel Faria Braz, assinou a nova denúncia entregue ontem na 35ª Vara Criminal.
Quatro PMs seriam executores
Com base nos novos depoimentos, nos 133 relatos feitos na primeira fase do inquérito na Divisão de Homicídios e em mais 32 mil ligações telefônicas interceptadas, além de outras provas periciais, como a análise das vozes dos acusados, o MP denunciou terça-feira mais 15 policiais por envolvimento na tortura e morte de Amarildo. Quatro PMs foram identificados como autores (executores da sessão de tortura): o tenente Luiz Felipe de Medeiros, o sargento Reinaldo Gonçalves e os soldados Anderson Maia e Douglas Roberto Vital. O major Édson dos Santos é apontado como mandante. O oficial responderá também por crimes de fraude processual, ocultação de cadáver e formação de quadrilha armada (este último junto com outros 14 policiais).
Os promotores pediram a prisão preventiva, e a Justiça decretou, de mais três policiais: o sargento Reinaldo Gonçalves — que teria tido envolvimento direto na tortura — e os soldados Lourival Moreira e Wagner Soares do Nascimento. Os três faziam parte do mesmo grupo tático de policiamento e não apareceram num primeiro momento porque seus nomes haviam sido omitidos da escala de plantão. Até a manhã de ontem, continuavam trabalhando na UPP da Rocinha. O MP requisitou também que a Polícia Militar suspendesse todos os envolvidos.
O destino de Amarildo — cujo nome sequer constava das investigações que deram origem à Operação Paz Armada, de repressão ao tráfico na Rocinha, durante a qual ele foi detido — foi selado quando uma informante do soldado Vital ligou para ele, no domingo, dia 14 de julho, às 18h05m. Ela telefonou para dizer que o ajudante de pedreiro era conhecido como Boi e estava no Bar do Júlio, numa das áreas mais pobres da comunidade conhecida como Roupa Suja, com a chave do paiol da quadrilha. Depois de 36 horas de uma operação que não apreendera sequer uma pistola, o então comandante da UPP, major Édson Santos, determinou, segundo o MP, que Amarildo fosse levado para a unidade e “trabalhado” (torturado). Os vizinhos e o dono do bar ainda tentaram impedir que Amarildo fosse levado, dizendo que ele era trabalhador, mas não foram ouvidos.
Além dos quatro denunciados como executores e do major, 12 PMs (três são mulheres) são acusados de vigiar a sede da UPP durante a tortura de Amarildo. Uma das acusadas, a soldado Thaís Rodrigues Gusmão, foi responsável por desligar as luzes para facilitar a retirada do corpo de Amarildo pelo telhado da UPP, que dá para uma área de mata. Outros oito PMs que estavam no local, mas nada teriam feito para impedir a morte da vítima, são acusados de omissão. Eles também vão responder por tortura seguida de morte.
Para o MP, apenas quatro dos PMs que estavam na UPP não tiveram envolvimento algum:
— Eles pediram que parassem a tortura e um deles chegou a ser hostilizado pelos demais, que faziam chacota, dizendo “deixa de ser frouxo, tu é polícia! (sic)”. Eles nada puderam fazer e contaram que não falaram antes por medo. Já os outros oito policiais que estavam no contêiner mantiveram a versão falsa e não demonstraram em nenhum momento a intenção de cessar a tortura. Eles vão responder por tortura seguida de morte, na modalidade omissão — afirmou Carmen Eliza Bastos.
Óleo para encobrir provas do crime
Segundo ela, logo após o crime, o tenente Medeiros jogou óleo no local para apagar provas, como manchas de sangue. Ainda de acordo com a promotora, sabendo que o telefone de um PM infiltrado estava sob interceptação, os policiais forjaram uma ligação telefônica para ele. Um deles se passou pelo traficante Catatau e assumiu a responsabilidade pela morte de Amarildo. A perícia técnica da Coordenadoria de Segurança e Inteligência (CSI) do MP analisou a voz dos 34 PMs citados no processo e concluiu que o soldado Marlon Campos Reis foi o autor da ligação. Através de levantamento da Estação Rádio-Base, os investigadores rastrearam o aparelho do PM Vital que estaria com Marlon quando ele fez a ligação.
— Eles sabiam que a ligação seria gravada. O soldado Marlon liga dizendo que é o Catatau, acusa o policial de X-9 e diz que ele terá o mesmo destino de Boi. Depois, ainda fala que colocará a morte de Boi na conta dele. O major passa a apresentar o áudio da suposta ligação de Catatau nas reuniões com os policiais para afirmar que Amarildo foi liberado e depois morto por traficantes. Foi uma forma que ele arranjou de intimidar e coagir os policias, de dizer que a tortura não aconteceu. Mas não há (proteção) acústica nos contêineres e todos ouviram tudo — explicou a promotora.
Cada acusado pode receber uma pena que varia de nove anos e quatro meses a 33 anos de prisão.
O coordenador do Gaeco, Cláucio Cardoso da Conceição, afirmou que as investigações complementares só foram possíveis graças ao excelente trabalho da Divisão de Homicídios e da 8ª Delegacia Judiciária da PM. Também participaram da coletiva os promotores Daniel Faria Braz; Paulo Roberto Mello Cunha Júnior, que apura outros crimes imputados aos PMs no processo da Auditoria Militar; e o corregedor da PM, Cezar Tanner.
Em nota, o advogado Marcos Espínola, que faz a defesa dos soldados Douglas Roberto Vital Machado, Jorge Luís Gonçalves Coelho, Victor Vinícius Pereira da Silva e Marlon Campos Dias, afirmou que as informações divulgadas pelo MP não constam do processo e que seus clientes negam as acusações.
O corregedor Cezar Tanner disse que nunca viu um caso como esse:
— A gente não sabe o que se passa na cabeça das pessoas.
Atualizado:23/10/13 - 8h12
Amarildo de Souza foi torturado até a morte, de acordo com depoimentos de PMs que trabalharam na noite Agência O Globo / Reprodução
RIO — O medo de morrer levou um policial militar da UPP da Rocinha a romper o silêncio que cercou de sombras, por cerca de três meses, os momentos de horror que marcaram a agonia e a morte do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza. Ao longo desse tempo, até revelar em detalhes o que aconteceu nos 40 minutos em que a vítima foi torturada dentro de um contêiner, ele foi perseguido por colegas de farda. Um dia, ao chegar ao trabalho, seu armário estava pichado com a inscrição “X-9”, dedo-duro na gíria policial. Com medo de ter o mesmo destino de Amarildo, o PM acabou por contar tudo que viu e ouviu no dia 14 de julho, quando o morador da Rocinha foi sequestrado. As revelações compõem um minucioso quadro do crime apresentado nessa terça-feira durante uma entrevista coletiva de promotores no Ministério Público estadual, encerrada com a notícia de que mais 15 PMs seriam denunciados, totalizando 25 acusados do brutal assassinato.
Com a prisão do major Édson dos Santos, ex-comandante da UPP, e de outros nove policiais militares no último dia 4, o PM, cuja identidade é preservada, resolveu revelar à polícia que a sede da unidade havia sido transformada num local de tortura, tão violenta quanto a do tráfico que dominou por tantos anos a comunidade. Ao decidir não sustentar mais a versão que, segundo ele, era imposta pelo major, o policial convenceu quatro PMs mulheres, que também estavam lá, a fazerem o mesmo. Elas prestaram depoimento no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco). Duas haviam sido obrigadas a ficar em um outro contêiner, bem perto de onde Amarildo era agredido. Ouvindo a tortura, elas entraram em pânico, caíram em prantos e tentaram deixar o local, mas foram impedidas, de acordo com o inquérito, por outros policiais. O relato é de que uma delas tapou os ouvidos para não escutar os gritos de dor e pedidos de ajuda de Amarildo.
Ainda de acordo com a denúncia, logo após a morte do morador da Rocinha, foi montada uma farsa para atribuir o crime ao tráfico. O desaparecimento do ajudante de pedreiro, no entanto, ganhou as redes sociais, onde foi criado e ganhou força um movimento que correu o mundo com a pergunta: “Cadê Amarildo?”.
— Foi o temor em relação ao comandante e a seu grupo que fez com que tantos policiais calassem por tanto tempo um fato tão grave. É impressionante o poder de intimidação deles — afirmou a promotora de Justiça Carmen Eliza Bastos de Carvalho, que, junto com o coordenador do Gaeco, Gláucio Cardoso da Conceição, e o promotor Daniel Faria Braz, assinou a nova denúncia entregue ontem na 35ª Vara Criminal.
Quatro PMs seriam executores
Com base nos novos depoimentos, nos 133 relatos feitos na primeira fase do inquérito na Divisão de Homicídios e em mais 32 mil ligações telefônicas interceptadas, além de outras provas periciais, como a análise das vozes dos acusados, o MP denunciou terça-feira mais 15 policiais por envolvimento na tortura e morte de Amarildo. Quatro PMs foram identificados como autores (executores da sessão de tortura): o tenente Luiz Felipe de Medeiros, o sargento Reinaldo Gonçalves e os soldados Anderson Maia e Douglas Roberto Vital. O major Édson dos Santos é apontado como mandante. O oficial responderá também por crimes de fraude processual, ocultação de cadáver e formação de quadrilha armada (este último junto com outros 14 policiais).
Os promotores pediram a prisão preventiva, e a Justiça decretou, de mais três policiais: o sargento Reinaldo Gonçalves — que teria tido envolvimento direto na tortura — e os soldados Lourival Moreira e Wagner Soares do Nascimento. Os três faziam parte do mesmo grupo tático de policiamento e não apareceram num primeiro momento porque seus nomes haviam sido omitidos da escala de plantão. Até a manhã de ontem, continuavam trabalhando na UPP da Rocinha. O MP requisitou também que a Polícia Militar suspendesse todos os envolvidos.
O destino de Amarildo — cujo nome sequer constava das investigações que deram origem à Operação Paz Armada, de repressão ao tráfico na Rocinha, durante a qual ele foi detido — foi selado quando uma informante do soldado Vital ligou para ele, no domingo, dia 14 de julho, às 18h05m. Ela telefonou para dizer que o ajudante de pedreiro era conhecido como Boi e estava no Bar do Júlio, numa das áreas mais pobres da comunidade conhecida como Roupa Suja, com a chave do paiol da quadrilha. Depois de 36 horas de uma operação que não apreendera sequer uma pistola, o então comandante da UPP, major Édson Santos, determinou, segundo o MP, que Amarildo fosse levado para a unidade e “trabalhado” (torturado). Os vizinhos e o dono do bar ainda tentaram impedir que Amarildo fosse levado, dizendo que ele era trabalhador, mas não foram ouvidos.
Além dos quatro denunciados como executores e do major, 12 PMs (três são mulheres) são acusados de vigiar a sede da UPP durante a tortura de Amarildo. Uma das acusadas, a soldado Thaís Rodrigues Gusmão, foi responsável por desligar as luzes para facilitar a retirada do corpo de Amarildo pelo telhado da UPP, que dá para uma área de mata. Outros oito PMs que estavam no local, mas nada teriam feito para impedir a morte da vítima, são acusados de omissão. Eles também vão responder por tortura seguida de morte.
Para o MP, apenas quatro dos PMs que estavam na UPP não tiveram envolvimento algum:
— Eles pediram que parassem a tortura e um deles chegou a ser hostilizado pelos demais, que faziam chacota, dizendo “deixa de ser frouxo, tu é polícia! (sic)”. Eles nada puderam fazer e contaram que não falaram antes por medo. Já os outros oito policiais que estavam no contêiner mantiveram a versão falsa e não demonstraram em nenhum momento a intenção de cessar a tortura. Eles vão responder por tortura seguida de morte, na modalidade omissão — afirmou Carmen Eliza Bastos.
Óleo para encobrir provas do crime
Segundo ela, logo após o crime, o tenente Medeiros jogou óleo no local para apagar provas, como manchas de sangue. Ainda de acordo com a promotora, sabendo que o telefone de um PM infiltrado estava sob interceptação, os policiais forjaram uma ligação telefônica para ele. Um deles se passou pelo traficante Catatau e assumiu a responsabilidade pela morte de Amarildo. A perícia técnica da Coordenadoria de Segurança e Inteligência (CSI) do MP analisou a voz dos 34 PMs citados no processo e concluiu que o soldado Marlon Campos Reis foi o autor da ligação. Através de levantamento da Estação Rádio-Base, os investigadores rastrearam o aparelho do PM Vital que estaria com Marlon quando ele fez a ligação.
— Eles sabiam que a ligação seria gravada. O soldado Marlon liga dizendo que é o Catatau, acusa o policial de X-9 e diz que ele terá o mesmo destino de Boi. Depois, ainda fala que colocará a morte de Boi na conta dele. O major passa a apresentar o áudio da suposta ligação de Catatau nas reuniões com os policiais para afirmar que Amarildo foi liberado e depois morto por traficantes. Foi uma forma que ele arranjou de intimidar e coagir os policias, de dizer que a tortura não aconteceu. Mas não há (proteção) acústica nos contêineres e todos ouviram tudo — explicou a promotora.
Cada acusado pode receber uma pena que varia de nove anos e quatro meses a 33 anos de prisão.
O coordenador do Gaeco, Cláucio Cardoso da Conceição, afirmou que as investigações complementares só foram possíveis graças ao excelente trabalho da Divisão de Homicídios e da 8ª Delegacia Judiciária da PM. Também participaram da coletiva os promotores Daniel Faria Braz; Paulo Roberto Mello Cunha Júnior, que apura outros crimes imputados aos PMs no processo da Auditoria Militar; e o corregedor da PM, Cezar Tanner.
Em nota, o advogado Marcos Espínola, que faz a defesa dos soldados Douglas Roberto Vital Machado, Jorge Luís Gonçalves Coelho, Victor Vinícius Pereira da Silva e Marlon Campos Dias, afirmou que as informações divulgadas pelo MP não constam do processo e que seus clientes negam as acusações.
O corregedor Cezar Tanner disse que nunca viu um caso como esse:
— A gente não sabe o que se passa na cabeça das pessoas.
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