ALERTA: A criminalidade e a violência crescem de forma assustadora no Brasil. Os policiais estão prendendo mais e aprendendo muitas armas de guerra e toneladas de drogas. A morte e a perda de acessibilidade são riscos presentes numa rotina estressante de retrabalho e sem continuidade na justiça. Entretanto, os governantes não reconhecem o esforço e o sacrifício, pagam mal, discriminam, enfraquecem e segmentam o ciclo policial. Os policiais sofrem com descaso, políticas imediatistas, ingerência partidária, formação insuficiente, treinamento precário, falta de previsão orçamentária, corrupção, ingerência política, aliciamento, "bicos" inseguros, conflitos, autoridade fraca, sistema criminal inoperante, insegurança jurídica, desvios de função, disparidades salariais, más condições de trabalho, leis benevolentes, falência prisional, morosidade dos processos, leniência do judiciário e impunidade que inutilizam o esforço policial e ameaçam a paz social.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

MODELO MILITAR X MODELO CIVIL



por Elói Pietá*


As avós das atuais polícias militares, os corpos permanentes ou guardas municipais, criados nas províncias logo após a Independência, já se miravam no modelo colonial português representado pelos exércitos de segunda linha (as milícias, ordenanças, ou corpos auxiliares), complementares ao exército principal, de primeira linha.

Com o advento da República, cresceram as forças militares dos estados, transformando-se em exércitos regionais, chegando a rivalizar com o exército nacional. Estas forças militares estaduais serviam às oligarquias regionais na disputa com o restante do país, ao mesmo tempo que serviam de polícia de dois tipos: de controle da ordem interna estabelecida (por exemplo, contra os grevistas e opositores políticos), e de polícia contra a criminalidade comum das classes pobres (ladrões, assaltantes de estradas, assassinos, arruaceiros). Não é de surpreender portanto que problemas hoje existentes tenham o peso de séculos.


O modelo militar de segurança

No modelo militar vigente de segurança, o crime não é visto como algo que se encontra em toda a sociedade. Ele é situado apenas como um problema de setores sociais bem definidos. Basta então reprimir aqueles setores, fazê-los recuar com ações exemplares que os atemorizem e, se possível, eliminar seus integrantes.

Na sociedade colonial e imperial, os principais inimigos eram mais explicitamente identificados: os índios e os negros. Os negros até hoje constituem um setor privilegiado para a repressão. A eles fazem companhia, nesta discriminadora preferência policial e judiciária, os homens pobres em geral – especialmente jovens –, os favelados, os grevistas, os sem-terra. Para reprimi-los, a polícia tem liberdades especiais e o Judiciário atua rigorosamente. As cadeias são feitas só para eles.

É de grande importância dentro deste modelo militar de segurança a noção de território a ser defendido ou atacado. O território a defender situa-se principalmente nas partes ricas ou de classe média das cidades e nos seus centros comerciais. É aí que os efetivos das forças policiais públicas são concentrados, com o auxílio das forças de vigilância privada. O território do inimigo está principalmente nas favelas, nos bairros de periferia, nas portas de fábrica.

As ações no território inimigo são mais elásticas no que diz respeito à legalidade. Elas resultam sempre em violências contra os delinqüentes e muitas vezes contra inocentes (parentes, amigos, vizinhos). Assim como na guerra, os exércitos atingem a população civil do território onde se move o inimigo. Os habitantes destes territórios são suspeitos em princípio. Eles são invariavelmente abordados e revistados quando a polícia faz uma blitz. As estatísticas mostram o tamanho dos constrangimentos para a obtenção de resultados policiais ridículos. Em setembro de 1997, em São Paulo, foram abordadas 15.136 pessoas e, destas, apenas 88 foram levadas aos distritos policiais para averiguações.


PMs como forças auxiliares e reservas do ExércitoO Exército conserva, em última instância, a função de polícia no Brasil, ao contrário de boa parte dos países democráticos, que definem como função das Forças Armadas apenas a defesa externa. Por intermédio da Inspetoria Geral das Polícias Militares, ele as mantém sob um controle permanente, à distância, cabendo-lhe autorizar o aumento de efetivos, o tipo e a quantidade de armamentos, a forma de organização e as normas gerais de funcionamento. Seu interesse em conservá-las como reserva tem a ver também com a idéia de preservar-se de desgastes, utilizando-as como intermediárias no exercício de sua possibilidade constitucional de impor a lei e a ordem interna.

A organização das polícias militares é exatamente adequada ao modelo militar de segurança. Elas reproduzem a organização do Exército. São divididas em batalhões, companhias e pelotões. Há um comando de área a cada três batalhões, formando uma espécie de regimento. Acima dos comandos de área estão os comandos de grandes regiões, como se fossem exércitos. Finalmente, na cúpula de todo o sistema, fica o comando geral, com seu estado-maior.

Para compor as tropas desta organização militar, seus integrantes são divididos em duas grandes partes, com escala hierárquica e com as mesmas denominações do exército: os praças (soldados, cabos, sargentos, subtenentes) e os oficiais. Suas fardas reproduzem a farda militar clássica. O regulamento disciplinar das PMs, semelhante ao do Exército, é bastante rígido e faltas cometidas nas relações internas podem ser punidas com prisão. Quando cometem crimes e indisciplinas, os policiais militares são julgados por conselhos militares, formados por quatro oficiais mais um juiz. Cada conselho forma uma auditoria da Justiça Militar. A investigação de seus crimes fica a cargo dos colegas de farda. São também militares os que desenvolvem tarefas administrativas, burocráticas e médicas, como é praxe nos exércitos.


Um exemplo da ideologia militar

O novo comandante da PM de São Paulo, coronel Carlos Alberto de Camargo, escreveu, em 1993, um pequeno livro chamado Estética Militar, publicado em abril de 1997. Nele, expõe com audácia sua tese, autoritária, elitista e antidemocrática, de que os militares constituem uma instituição separada do povo, destinada a corrigi-lo e a pôr ordem na vida coletiva.


Para ele, a solenidade, o rito, o formalismo, a ordem unida, a farda, os sinais visíveis de subordinação, o culto à bandeira são essenciais para a criação de uma psicologia especial, o brio militar, e de uma ética própria, expressa no sentimento exaltado do dever, da hierarquia e da disciplina. Ele considera que a cultura brasileira, de individualismo e indisciplina, estimula a desobediência às regras sociais, levando à prática de transgressões e ao descrédito do povo nas instituições. Os pobres, mais do que os outros, pelo seu inconformismo com a sociedade, segundo o coronel, tendem a não acatar as suas regras. Sua lógica maniqueísta conclui que, se houver deformação do policial durante sua atividade, não será pela formação militar (que é boa), mas pela influência do ambiente social em que ele vive, trabalha e de onde vem (que é mau), ambiente que ele chama de "o esgoto do mundo". Com tais idéias, não surpreende quando ele, sob uma linguagem enigmática, defende a independência estrutural das polícias militares em relação ao poder civil eleito nos estados.


Numa das passagens do livro, referindo-se à uniformidade entre si das polícias militares nos diversos estados brasileiros, diz: "Os valores éticos que cultivam, fruto de sua formação policial-militar, proporcionam-lhes o mesmo ideal, estejam onde estiverem, a despeito da dispersão territorial dificultar a unidade de pensamento, à medida que os expõe às influências políticas locais que, se prevalecessem, poderiam colocar em risco os interesses sociais".
Traduzindo, vê-se que os governos civis dos estados não podem dirigir efetivamente as polícias militares, que por si mesmas já têm uma orientação definida...


Para o coronel, sem as polícias de caráter militar haveria a catástrofe: "A supressão da estética militar nas polícias fardadas estaduais ocasionará danos irreversíveis ao aparelho do Estado e colocará em risco a integridade da sociedade e de cada indivíduo".


A capitulação dos governos civis

Os governos civis têm aceitado a autonomia das organizações militares. A começar pelo governo federal. O general Alberto Cardoso, chefe da Casa Militar do presidente Fernando Henrique Cardoso, considera que a lealdade das Forças Armadas é com o Estado (que é estrutural), e não com o governo (que é conjuntural).


Daí a sua possibilidade de continuar tutelando o país e de intervir no poder civil, conforme diz na Folha de S. Paulo de 17/03/96: "Nenhuma das tentativas ou concretizações de intervenção no processo político se deveu a interesses corporativos de caserna. Todas decorreram de avaliações (não cabe aqui discutir se certas ou não) sobre as duas lealdades – a presidencial e a castrense – à nação, em período histórico de imaturidade política e em espaço vazio de providências institucionais".


Por sua vez, os comandantes das polícias militares – que são funcionários públicos de cada estado, subordinados ao respectivo governador – agem como uma confederação, reúnem-se no Conselho Nacional de Comandantes Gerais e fazem pronunciamentos coletivos à população brasileira.


Os partidos de direita adotam integralmente em suas propostas as concepções conservadoras predominantes nas polícias. Os partidos de centro ou de esquerda não têm uma proposta consistente, abrangente e assimilada por suas lideranças e bases. De todos os lados surgem promessas de investimentos, como se, por uma mágica, fossem encontrados os recursos financeiros.


Os governos continuam errando quando entregam a militares ou a quadros policiais a direção das secretarias de segurança e de outros órgãos-chave. Por exemplo, o governo do PSDB no Rio de Janeiro entregou sua política de segurança a um general do Exército. Da mesma forma agiu o PT no início de sua gestão nos únicos dois estados por ele governados. E assim fazem os outros partidos.


Por uma concepção civil de segurança

Desmilitarizar a segurança é prevenir e perseguir o crime em todas as camadas sociais; é investigar os criminosos para poupar os inocentes; é fazer com que as polícias e o judiciário ajam como instituições de funcionários públicos a serviço e não acima da sociedade; é subordinar as polícias aos governos eleitos e à estrita legalidade; é capacitar os partidos políticos para definir políticas de segurança; é restringir as Forças Armadas apenas à função de defesa externa.


Os crimes cometidos pelos integrantes das camadas ricas da sociedade são normalmente mais nocivos à coletividade do que a maior parte dos crimes cometidos por delinqüentes originários das camadas pobres. Eles impedem que o Estado tenha recursos para as políticas sociais que fariam cair grandemente a criminalidade entre as classes pobres.
Todos estes tipos de crime permanecem impunes como decorrência da concepção presente em todas as nossas instituições de segurança pública. A polícia evita investigá-los, não é preparada para isso, inibe-se com medo de ser processada por atos ilegais e é facilmente corruptível. O Ministério Público não tem estrutura e dedicação. O Judiciário multiplica sua lentidão e torna-se cuidadoso e brando.


Numa concepção civil de segurança, as polícias devem revolucionar sua capacidade de informação e investigação, de tal modo que possam chegar ao criminoso sem constranger a sociedade e sem que ela seja jogada num constante clima de guerra. Deve ser afastada a prepotência e a violência que trata o cidadão como um subordinado às forças de polícia.
Na concepção atual, os cidadãos são tratados como se fossem hierarquicamente inferiores ao mais baixo na escala hierárquica dos policiais. Na concepção civil de segurança, os policiais são funcionários públicos remunerados para servir a todos os cidadãos conforme os direitos que lhes são constitucionalmente assegurados e as leis vigentes nas relações sociais. Deve ser banido o uso da violência, embora não o uso da força justificada pela legalidade.


As idéias de uma segurança de natureza civil pressupõem a subordinação real e não apenas retórica das polícias aos governos. Quem dirá quais são os interesses da sociedade e como estes devem ser providos são os governos eleitos e a legislação vigente. Caberá apenas ao Poder Judiciário interpretar a lei e determinar qualquer intervenção inibidora.
Para que os governos assumam efetivamente o controle das polícias, é necessário que os políticos demonstrem capacidade de formular políticas de segurança pública e consolidar o apoio social a elas.


A limitação do papel das Forças Armadas à defesa externa do país é fundamental para a vitória de uma concepção civil de segurança e para acabar com a tutela que pretendem exercer como se fossem a instituição máxima da nação. A transformação das polícias militares em polícias de caráter civil será parte integrante desta modificação necessária.


Transformar as PMs em polícias de caráter civil

A crise de ineficiência e deformação da polícia civil também é imensa. O modelo novo das polícias militares não pode ser o das atuais polícias civis. Nem é adequado que estas absorvam total ou parcialmente as polícias militares. Estas devem ser reorganizadas tendo em vista sua transformação em polícia completa, com predominância da atividade de prevenção, mas com a prerrogativa de investigar antes para prevenir melhor, e investigar na seqüência do crime. Elas deverão portanto ter um ramo uniformizado, largamente majoritário, mas também um ramo não-uniformizado, necessário à investigação. É essencial para tudo isso que suas relações com o Ministério Público e o Poder Judiciário sejam diretas, sem a intermediação das polícias civis como hoje. Sua organização deve abandonar o modelo militar, distribuindo-se em unidades menores, e passando a funcionários civis as tarefas não-policiais. Deve adotar carreira única, simplificando os diversos graus, perder o privilégio de justiça própria, ter disciplina e hierarquia garantidas por um novo regulamento disciplinar, com sanções, porém sem a atual prisão disciplinar.


Paralelamente a isso, as polícias civis deverão se adaptar à função de polícia predominantemente destinada a auxiliar o poder judiciário, que hoje desempenham muito mal. Elas devem continuar tendo setores especializados para combater crimes de maior complexidade, tais como assassinatos de autoria desconhecida, seqüestros, crimes do colarinho branco etc. A guarda de presos precisará sair de sua responsabilidade.
Os setores de perícia técnica ou médica, atualmente vinculados às polícias civis, precisarão ser independentes, constituindo uma terceira grande unidade policial, subordinada como as outras às secretarias de segurança pública.


Os governos civis devem exercer efetivamente o comando das polícias por meio das secretarias de segurança. Elas terão a autoridade de transmitir as orientações de governo, distribuir as tarefas básicas, resolver os conflitos de competência, criar sistemas de informação, controlar os de comunicação, fiscalizar internamente o cumprimento da lei e, em estreita vinculação com o ministério público, prevenir, reprimir e investigar os crimes cometidos por policiais.


As secretarias de segurança também deverão renovar toda sistemática de combate ao crime organizado, criando forças conjuntas de investigação e repressão que integrem as polícias e outras instituições de governo, como por exemplo as secretarias de finanças, as procuradorias de Estado, as instituições científicas.


Os municípios precisam também integrar-se ao sistema de segurança – através das guardas municipais – para cumprir tarefas mais simples, como o atendimento primário em postos policiais de bairro, o policiamento de trânsito, a vigilância de escolas e de centros comerciais. Também as tarefas de combate a incêndios podem passar aos municípios.
Finalmente, com um modelo civil de segurança a comunidade terá canais de participação no planejamento e na fiscalização dos órgãos governamentais. Mesmo porque, para chegar a ele, será necessária a adesão e a mobilização popular. A luta para este novo modelo irá preparar a sociedade para participar de sua direção e gestão.


*Eloi Pieta ex prefeito de guarulhos.

FONTE: Fundação Perseu Abramo -Teoria e Debate nº 36 (out,nov,dez/1997)

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