REDE GLOBO, FANTÁSTICO, Edição do dia 24/06/2012
Os bandidos são mantidos em cativeiro, dentro da delegacia, e liberados mediante pagamento de resgate.
- Quanto que é essa caminhada aí, doutor? Na medida da nossa palavra e do nosso alcance.
- Vamos conversar pessoalmente isso aí, cara.
- Você acha melhor?
- É, melhor. Fica tranquilão.
Essa conversa é o início de uma negociação com policiais civis
de São Paulo para não prender um criminoso. O Fantástico teve acesso a
várias gravações como estas, que mostram, em detalhes, como funciona
esse submundo da corrupção, que inclui até sequestros praticados por
policiais:
- Quer ficar à vontade? Tem que chegar naquilo que foi combinado.
- Pelo amor de Deus, como é que eu vou arrumar esse dinheiro?
- Aí, você dá os seus corres.
Jóias roubadas chegaram a ser derretidas e viraram dinheiro para comprar a liberdade de um criminoso:
- Tô precisando é de dinheiro. Tem como queimar isso aí?
- O ouro?
- É. Vender isso pra mim?
- Tem.
Qual a punição para policiais que cometem crimes graves como
esses? O que aconteceu, por exemplo, com os suspeitos de extorquir
dinheiro do traficante Juan Carlos Ramirez Abadia, preso em 2007?
Bandidos que pagaram propina a policiais para não ser presos
voltaram a roubar, vender drogas e praticar atentados. O Ministério
Público e a corregedoria da Polícia Civil consideram as imagens obtidas
com exclusividade pelo Fantástico provas de um crime. Em uma ação,
policiais são acusados de sequestrar uma mulher e só libertá-la mediante
pagamento de resgate.
As gravações, registradas por 19 câmeras, são da Delegacia de
Investigações Gerais (DIG), uma das principais de Campinas, no interior
de São Paulo. Esse caso terminou com uma tentativa de assassinato.
O carcereiro Fábio Campos, o investigador Hélio Pavan Filho e o
agente policial Sérgio Carrara vão até uma casa, em Campinas. É
terça-feira, 9 de agosto de 2011. Segundo as investigações, eles
procuram José Agripino, que, de acordo com o Ministério Público, usava o
imóvel como laboratório de refino e preparação das drogas que eram
vendidas.
Sem ordem judicial, os policiais vasculham a casa e encontram
maconha. O traficante José Agripino não está no local. Os policiais
levam para a delegacia o dono da casa, o advogado Samoel Alves Da Silva,
e uma mulher que mora com ele. Ela não pode ser identificada porque,
hoje, é uma testemunha protegida. Em depoimento, ela contou que os
policiais queriam R$ 100 mil de propina para "resolver aquela situação",
para não prender ninguém; e que foi obrigada por eles a ligar de
telefones públicos para José Agripino. Em uma dessas tentativas, ela
estava acompanhada pelo policial Sérgio Carrara.
A mulher disse ao Ministério Público que ela e o policial Sérgio
foram até uma telefone para, de novo, tentar falar com o traficante.
Dessa vez, ele atendeu. Segundo a mulher, o policial pegou o telefone da
mão dela e mandou o traficante passar na delegacia, mas sem advogado.
A mulher volta para a delegacia e, uma hora depois, José
Agripino chega de carro. O homem apontado pelo Ministério Público e pela
corregedoria da Polícia Civil como traficante de drogas é recebido pelo
carcereiro Fábio Campos e pelo agente policial Sérgio Carrara. Os três
demonstram intimidade, se cumprimentam e entram na DIG.
“De acordo com o que foi apurado durante as investigações, o
objetivo era a prática de uma extorsão”, explica o promotor de Justiça
Amauri Silveira Filho.
A mulher diz ter presenciado a negociação da propina. Segundo
ela, José Agripino não concordou em dar R$ 100 mil e os policiais
pressionaram. Falaram que a maior parte era do doutor e que iria sobrar
pouco dinheiro para eles. Para o Ministério Público, o doutor é um homem
de gravata, o delegado da DIG Paulo Henrique Correia Alves, chefe da
equipe e que aparece em uma imagem depois de uma conversa com os
policiais. A mulher contou que chegou-se a um acordo e o pagamento seria
feito em duas prestações: R$ 60 mil ainda naquele dia e mais R$ 20 mil
no mês seguinte.
José Agripino sai da delegacia com o advogado Samoel Alves da
Silva, o dono da casa onde, segundo os policiais, funcionaria um
laboratório de refino de cocaína. Segundo o Ministério Público, a mulher
foi mantida refém dentro da delegacia como garantia de que o pagamento
seria feito.
“Nos autos, em nenhum momento foi apresentado nenhum mandado
judicial, nenhuma ordem de serviço, nenhum relatório de investigação.”,
aponta o promotor.
A mulher diz que só foi libertada depois de sete horas de
sequestro. Contou ainda que, depois, viu quando os policiais Fábio
Campos, Hélio Pavan Filho e Sérgio Carrara receberam dinheiro da
extorsão das mãos de José Agripino. Naquele mesmo dia, o advogado Samoel
Alves da Silva diz ter sofrido um atentado. Segundo ele, o traficante
José Agripino e mais sete homens armados foram até a casa dele cobrar
explicações.
“Queriam esclarecer por que a policia foi atrás deles”, explica o advogado Samoel Alves da Silva.
Samoel conta que foi colocado em um carro e que, no acostamento
de uma estrada, levou sete tiros a mando do traficante José Agripino.
“Esse rapaz, que depois eu fiquei sabendo que chama José
Agripino, ele veio e falou: pode fazer o serviço aqui”, conta Samoel.
José Agripino é um foragido da Justiça. Dos quatro policiais
acusados de receber propina do traficante, três estão presos. O delegado
Paulo Henrique Correia Alves, que também responde na Justiça por
extorsão mediante sequestro, é o único que aguarda o julgamento em
liberdade.
Fomos à delegacia onde ele trabalha hoje e ligamos três vezes
para o delegado Paulo Henrique, mas ele não retornou. O Fantástico
também procurou os advogados dos outros acusados, mas só o do
investigador Hélio Pavan Filho se manifestou.
“Os policiais, todas as vezes que foram ouvidos, de forma
veemente, tanto o meu cliente como os outros, negam qualquer tipo de
solicitação ou qualquer tipo de ilicitude por parte dos funcionários
públicos envolvidos”, disse Daniel Leon Bialski, advogado de Hélio Pavan
Filho.
Cometer um crime, ser preso e comprar a liberdade dentro de uma
delegacia: em São José dos Campos, também no interior paulista, mais uma
denúncia escandalosa. A câmera de um posto de gasolina filma quando um
homem furta dois celulares, em agosto de 2011. Três dias depois, ele e
um comparsa voltam para abastecer. O ladrão é reconhecido pelos
funcionários, que chamam a polícia. A dupla é levada para o Primeiro
Distrito policial.
Segundo o Ministério Público, os dois homens ficaram trancados
em uma sala. De acordo com as investigações, os policiais exigiram R$ 20
mil, mas eles só tinham R$ 4,5 mil. Como garantia de que todo o
pagamento seria feito, os policiais ficaram com dois cheques, assinados
pelos suspeitos.
“Eles permaneceram na delegacia por cerca de quatro a cinco
horas, se dispuseram a recolher valores para pagar o máximo possível. Só
assim que eles foram libertados”, lembra o promotor de Justiça
Sebastião José Pena Filho.
Com os bandidos em liberdade, o dono do posto diz que passou a
ser ameaçado de morte. O homem que furtou os celulares quis que o
comerciante pagasse os R$ 20 mil que teve de entregar aos policiais para
não ser preso. Caso contrário, a quadrilha iria explodir o posto.
“Essas ameaças perduraram por vários dias. Foi efetuada a prisão
do rapaz que extorquia o dono do posto. Os delegados de polícia não
tomaram nenhuma providência, nem para cessar a extorsão que ocorria e as
ameaças ao empresário, nem para apurar a corrupção dos policiais
subordinados”, acrescenta o promotor.
Policial que comete crimes graves, como extorsão e sequestro,
deve ser julgado como criminoso comum. Nos últimos anos, alguns desses
casos se tornaram grandes escândalos. O que será que aconteceu? O
Fantástico procurou as respostas.
Caso Juan Carlos Ramirez Abadia
Dezessete policiais civis foram acusados de extorquir dinheiro e
sequestrar integrantes da quadrilha do traficante colombiano, preso em
2007, e que cumpre pena nos Estados Unidos. Na época, segundo as
investigações, os policiais chegaram a exigir R$ 2 milhões para não
prender integrantes do bando de Abadia.
“Falaram: ‘se você não trouxer o dinheiro, então vamos matar esse cara’”, lembra um homem.
Até agora, nenhum policial foi julgado e expulso.
Em outro caso grave, desta vez contra sete policiais da Dise,
que combate o tráfico de entorpecentes em São José dos Campos, um homem
foi levado para a delegacia suspeito de vender drogas e montou uma
armadilha para denunciar os policiais. O suspeito ficou sozinho na cela e
pensou em uma forma de denunciar a extorsão. Ele pegou o chip do
celular e quebrou em três partes. Com um chiclete, colou os pedaços em
locais diferentes: um no cano do chuveiro, outro no ralo e o último na
parede, bem em cima da grade.
Essa foi a prova que desmentiu a versão dos policiais de que o
suspeito nunca tinha passado pela delegacia. Ele ainda justificou um
saque de R$ 20 mil no banco da seguinte forma: pagamento para policiais.
“Há indícios veementes de que foi uma extorsão mediante
sequestro praticada por policiais, infelizmente”, comenta o promotor de
Justiça Cássio Conserino.
Os policiais foram denunciados à Justiça há três meses, depois
de sete anos de investigação. Todos continuam trabalhando na polícia.
Mas por que será que a punição demora tanto tempo assim para ser
aplicada? Para o delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Marcos
Carneiro Lima, o problema está na burocracia:
“Existe o princípio da presunção da inocência. No Brasil, há uma
distorção enorme, porque em cima dessa presunção e a série de
possibilidades de recursos faz com que, muitas vezes, gere essa sensação
de impunidade.”
Lembra da escuta telefônica que abriu essa reportagem? A
conversa não tinha sido divulgada até hoje. Faz parte de um processo
judicial em que três policiais da Delegacia de Combate ao Tráfico de
Drogas de Campinas foram acusados de exigir R$ 15 mil de um suspeito, em
2008. Mesmo condenados pela Justiça, os policiais ainda não foram
expulsos. Um deles é o investigador Itamar Gomes da Silva. E sabe onde
ele trabalha? No plantão da DIG: aquela mesma delegacia usada, segundo o
Ministério Público, como cativeiro por policiais. Procurado, o
investigador Itamar não retornou nossas ligações.
Durante a apuração dessa reportagem, nossa equipe pesquisou a
situação de 43 policiais civis, acusados de cobrar propina e até fazer
sequestros para não prender criminosos. Segundo a delegacia-geral da
Polícia Civil de São Paulo, apenas três deles foram demitidos; quatro
foram considerados inocentes e 36 continuam trabalhando e recebendo
salário.
“A nossa posição é: o policial que comete crime é pior que o
bandido comum. A sociedade brasileira não tolera mais essa galopante
corrupção, essa galopante criminalidade, principalmente quando envolve o
agente da lei”, conclui o delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo,
Marcos Carneiro Lima.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Se existisse no Brasil um Sistema de Justiça Criminal com a participação próxima, ativa e efetiva da justiça, este tipo de caso não ocorreria, já que somente um juiz poderia determinar a liberação de um preso pela polícia. O Uruguai é um exemplo bem próximo.O problema é que no Brasil, a justiça não quer se envolver diretamente com os delitos, preferindo a forma burocrata, oficiosa, morosa e dependente de tratar as questões de ordem pública. A PEC que cria o juiz de garantia está mofando no Congresso e o MP prefere investigar do que fazer o controle externo.