O senhor de fala mansa, barba rala e cabelo curto em nada lembra o polêmico delegado que incendiou a polícia fluminense na década de 90 ao denunciar a existência de uma “banda podre” na corporação. Aos 67 anos, aposentado há duas décadas, Hélio Tavares Luz, chefe de Polícia do Rio de Janeiro de julho de 1995 a setembro de 1997, no governo Marcello Alencar (PSDB), vive entre Porto Alegre, sua cidade natal, a capital carioca, onde moram as duas filhas, e Paris, cidade onde residiu com a família.
– Não uso a carteira de delegado nem porto arma. Me sinto mais bancário do que policial.
Filho do general do Exército Hélio Luz, cassado pela ditadura militar, Hélio trabalhou como escriturário do Banco do Brasil entre 1964 e 1974 – período em que prestava assessoria jurídica voluntária aos movimentos sociais no Rio.
– Era uma militância de base, em favelas e em áreas rurais – recorda.
Seduzido por uma jornada de trabalho amigável, que concedia quatro dias de folga para cada 24 horas trabalhadas, trocou a vida de bancário pela de policial. A fama de incorruptível conduziria o delegado à chefia de Polícia. Em menos de duas décadas, transformava-se no “xerife da esquerda” . No cargo, notabilizou-se pela prisão de alguns dos principais traficantes da cidade, entre eles Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, um dos líderes do Comando Vermelho (CV) – executado em 2002, em Bangu 1, pelo grupo de Fernandinho Beira-Mar. Sua gestão marcou também o início da redução do número de sequestros no Rio. Os casos chegaram a 108 em 1995. Caíram para 58 em 1997. O delegado atribui a queda a uma decisão simples:
– Eu disse: a partir de hoje, a (delegacia) Antissequestro não sequestra mais. Como a Antissequestro não sequestrou mais, os sequestros acabaram.
Ao longo de duas horas e meia de conversa, em uma terça-feira ensolarada, Hélio voltou a criticar a criação das Unidades de Polícia Pacificadora, alertou para os riscos da corrupção na corporação e defendeu uma polícia voltada aos “crimes de sangue”. A seguir, uma síntese da entrevista em um café da Fundação Casa França-Brasil, no centro do Rio.
Às vésperas da Copa do Mundo, como o senhor avalia a segurança pública no Rio?
O problema da segurança pública, não só no Rio, é que os programas são feitos o tempo que dura o governo. Não temos política de Estado, temos política de governo. E segurança exige política de Estado. Fica limitado ao tempo de governo de cada um. As coisas mudam e ninguém percebe o custo disso. No Rio, quantas políticas, entre aspas, de segurança foram aplicadas e nenhuma deu certo. Nenhuma teve consequência. Nunca ultrapassou governos. É tudo no improviso. A estatística deu certo, opera aquilo ali. Não deu, retorna. Eu nunca ouvi falar em política de segurança a médio e longo prazos. É a estatística que dita a política de segurança.
As estatísticas não devem ser levadas em consideração?
A estatística não reflete tudo. É um fator, em última análise. Os governadores dizem: homicídio reduziu tanto. Certo, mas reduziu por quê? Eu preciso saber a causa. Qual a política de segurança no Rio? Ocupação policial militar de uma área geográfica através de base fixa: coloca a PM na região e se faz o controle do crime.
O senhor está falando das UPPs. Por que o senhor tem criticado as Unidades de Polícia Pacificadoras?
Isso não é novidade. Já foi feito no Rio, há uns 20 anos, na Zona Sul. Colocaram cabines de polícia para evitar problemas de assalto, sobretudo na orla. E não deu resultado. Há 40 anos, a ditadura militar, em áreas de periferia, implantou e desenvolveu o Destacamento de Policiamento Ostensivo (DPO). O objetivo era o controle social das favelas. Então, nas favelas do Rio não havia problema de segurança. Eram áreas pacíficas, tranquilas, sem rebeldia. Havia um sargento, um cabo e uns 15 ou 20 soldados. Eles também faziam ações cívicas: tiravam carteira de identidade, certidão de nascimento, carteira de trabalho. De um dia para outro, uma favela amanhecia dominada pelo Exército quando necessário. O DPO deu certo? Não. O DPO se degenerou com o tempo. O governador Sérgio Cabral copiou este modelo (conforme o governo do Rio, as UPPs foram inspiradas em uma experiência na área de segurança pública em Medellín, na Colômbia).
Não faz sentido ter a polícia perto da comunidade?
Colocar a polícia fixa lá dentro, que não é o policiamento móvel, é possível? Até hoje, no Brasil, não deu certo. Nem com as polícias Civil e Militar, nem com as Forças Armadas. O Exército tem todo o cuidado para não permanecer numa ocupação em área de periferia. Daqui a pouco, eles vão estar próximos do traficante e não vão resistir. O soldado não resiste, o sargento não resiste, o tenente não resiste. Nós vimos, há um tempo, o Exército tomando conta do Morro da Providência. Um tenente pegou dois caras e entregou para um grupo rival, no Morro São Carlos (militares que vigiavam o Morro da Providência, durante reformas de casas no projeto federal Cimento Social, levaram três jovens em um caminhão do Exército ao Morro da Mineira, controlado por uma facção de traficantes rival aos que atuam na Providência. O trio foi executado). Como é isso? Foi uma entrega, teve grana. É por isso que o Exército sabe que não pode ficar muito tempo num mesmo lugar.
A entrada da polícia não é uma forma de retomar o controle do Estado?
Que história é essa de que o Estado não tinha controle? Só fala isso quem não conhece polícia. Nunca existiu no Rio favela independente, solta, fazendo o que quer. É a maior balela. O traficante para traficar tem de pagar para a polícia. Se ele não pagar à polícia, vai para a vala. Não existe tráfico independente no Rio.
Nos anos 90, o senhor falou o seguinte sobre as polícias especializadas: “No Rio, a Roubos rouba, a Furtos furta e a Homicídios mata”. A situação continua assim?
E ainda tinha a Antissequestro, que sequestrava (risos). Eu não tenho esse conhecimento. Já estou aposentado há algum tempo. Na época, quando fui dirigir a Antissequestro, havia agentes praticando sequestros. Eu estava de saco cheio e disse: a partir de hoje, a Antissequestro não sequestra mais. Como a Antissequestro não sequestrava mais, os sequestros acabaram. Todos os governadores de lá para cá sabem disso. Em relação ao roubo, não é que o policial puxe carros. Mas tinha acerto com desmanches, os receptadores.
À distância, a impressão que se tem é de que as UPPs estão influenciando na vida do Rio, deixando a cidade mais segura.
É a melhor versão que existe. Os problemas do Rio são as favelas e os favelados. O que se faz é controle social da favela, repressão. Eu não acredito nisso. Os arrastões continuam. O pó continua sendo vendido. As facções continuam existindo.
Em que momento da história houve este afastamento do Estado e da sociedade sob o ponto de vista da segurança pública?
Acho que desde o desembarque do Dom João VI no Rio (risos). A polícia foi criada por Dom João porque, quando a Família Real desembarcou aqui, havia mais escravos do que integrantes da Corte (a Família Real chegou ao Brasil, em 1808, fugindo da invasão das tropas napoleônicas em Portugal) A polícia foi montada por medo dos escravos (em 10 de maio de 1808, Dom João criou, com as mesmas atribuições que tinha em Portugal, o cargo de Intendente Geral de Polícia da Corte. Essa polícia foi a estrutura básica da atividade policial no Brasil). Eles passaram o chapéu e recolheram dos comerciantes que tinham alguma posse para montar a polícia. Talvez se explique por que a polícia se acostumou a não viver do Estado e a não ver o interesse do cidadão. Ela olhava o interesse de quem pagava. Era essa polícia que chicoteava os escravos. Isso foi se constituindo de tal forma que, no Estado da Guanabara, até a década de 70, quem pagava o salário do policial era o jogo do bicho, que pagava quatro vezes mais do que ele ganhava. O Estado pagava um bico para o policial.
Recentemente, soube-se das relações do banqueiro do bicho Carlinhos Cachoeira com o então senador Demóstenes Torres. No Rio, os bicheiros corrompem a polícia há meio século. Qual o real poder do jogo do bicho?
O jogo do bicho é o único crime organizado do Brasil. Por quê? Forma um cartel. Não há discussão sobre quem toma conta de determinada área. O Castor de Andrade morreu e ninguém ocupou os pontos do Castor, em Bangu. A briga que tem hoje é entre a própria família. Segundo lugar: é nacional. O jogo do bicho do Rio recebe a descarga de todo o Brasil.
Por que não se combate o jogo do bicho, que é considerado uma contravenção?
O jogo é assimilado pelo Rio e pelo país e está inserido entre os poderes constituídos da República, se é que vivemos numa República. O jogo do bicho está inserido em todos os poderes, em diferentes níveis. Executivo, Legislativo, Judiciário, membros do Ministério Público. Talvez seja esta a explicação para a falta de combate.
O senhor não considera crime organizado as facções que dominam favelas no Rio?
Claro que não. Primeiro porque não formam cartel. Eles estão sempre brigando, uma facção está sempre querendo se apoderar da área da outra. Eles não estão inseridos nos poderes constituídos na República. Eles não conseguem nem eleger representantes. Ao contrário, são usados, instrumentalizados, no momento do voto para eleger o pessoal do asfalto.
E as milícias, formadas por policiais e ex-policiais?
As milícias são crime organizado. É um braço organizado do Estado. É muito pior do que o tráfico no morro. Ela compromete o Estado. Tem agente penitenciário, policial civil, bombeiro, militar. Tem o vigilante, segurança de firma, está tudo lá. É uma parceria público-privada, uma PPP.
Como o senhor avalia esta onda liberalizante em relação à maconha, que pode ser produzida, comercializada e consumida no Uruguai e em alguns Estados dos EUA.
A polícia perde muito tempo com a questão do tóxico. Tóxico é uma questão de saúde, não de polícia. Vamos discutir isso no Ministério da Saúde. Como o uso do cigarro, que foi reduzido. Por que não se pode fazer isso com o tóxico? Acho que a polícia deveria trabalhar apenas com crimes de sangue. Se a polícia tiver eficiência no combate ao homicídio, você combate tudo. Esse país é um país de feudos. E feudos só são mantidos com sangue.
E crimes contra o patrimônio?
O crime contra o patrimônio só existe porque tem receptador. Se você não tiver comprador de ouro para revender para lojas, você não tem roubo de joias. Se não tiver ferro-velho que compre peças roubadas, o cara vai fazer o quê com o carro?
O papel das polícias está em debate. Especialistas defendem desde o ciclo completo, com a Civil e a Militar realizando atividade ostensiva e judiciária, até a unificação das polícias. Qual a opinião do senhor?
Polícia é uma temeridade. Hoje, uma fiscaliza a outra. Além disso, se você não controla 20 mil policiais, vai controlar 40 mil? Ciclo completo? Não sei. O problema não é a polícia. O problema é o Estado. Você não pode ter uma polícia não corrupta num Estado corrupto, com estruturas corruptas.
Há duas semanas, um jovem foi executado com três tiros na cabeça, na Baixada Fluminense, no meio da rua e durante o dia, e um adolescente infrator foi torturado, despido e preso num poste. Estamos indo em direção à barbárie?
Houve a morte de uma PM na UPP da Vila da Penha. Em função disso, a PM matou seis caras no Morro do Juramento. Dizem que eram traficantes. Eles tinham de ser presos, com cana dura. Mas foram executados. A gente permite que o Estado faça isso. A algumas pessoas até aplaudem, mas isso tem repercussão.
O senhor assumiu a chefia de Polícia no governo Marcello Alencar (PSDB). O secretário era o general Nilton Cerqueira, defensor dos governos militares e homem responsável pela captura e morte do guerrilheiro Carlos Lamarca. Como foi para um esquerdista trabalhar com um general linha-dura?
O general Cerqueira queria um delegado para a chefia que não levasse grana. Ele não queria um policial competente. Nada disso. Eu estudei em colégio militar e havia um assessor do general Cerqueira que me conhecia. E ele sabia que eu não levava grana. Na época, eu também me surpreendi com o convite. Mas a proposta foi de trabalhar sem interferência do governador.
Parece contraditório. O senhor defende política de Estado...
Foi um momento interessante. Ninguém de fora precisava dizer que a polícia era corrupta. Eu, que era o chefe, disse. Eu trabalhei com a banda podre porque eles entenderam que precisavam trabalhar. O general não interferia. A questão divergente era ideológica. Mas isso a gente não conversava.
O senhor foi eleito deputado estadual pelo PT. Por que se afastou da vida pública?
A minha passagem pela Assembleia talvez seja uma experiência pior do que na polícia. A polícia age na sombra. Você vê o mundo de cabeça para baixo. No parlamento, eu vi tudo de cabeça para baixo, mas num mundo de cabeça para cima. O filme Tropa de Elite 2 fala um pouco da Assembleia, mas aquilo é a parte boa. Eles não mergulharam na corrupção. É um poder que reflete a sociedade brasileira. Parlamento é coisa de Casa Grande. Mas nós ficamos na senzala. Quando o cara vende o voto, é porque aquilo é o que ele pode tirar de melhor daquele voto.
A “banda podre” o assediou?
Nunca. Esse negócio de que o policial é ameaçado e por isso tem que receber dinheiro também não existe. É balela. Como eu não recebia, sobrava mais para eles. É um raciocínio muito simples: “você não gosta de dinheiro, problema é seu”.
O senhor é pessimista ou otimista em relação ao futuro o país?
Otimista. Esse país é incrível. Hoje todo mundo toma conhecimento da informação, que é divulgada pela imprensa. Aquilo é um fuzil. A República brasileira está nascendo. Isso leva tempo.
XERIFE DA ESQUERDA
A saída da chefia da Polícia, após dois anos, ocorreu durante uma manifestação por melhores salários. Orientados por Hélio, policiais colocaram braçadeiras pretas, em sinal de luto. Tudo corria sem percalços até uma comissão ir ao gabinete da chefia:
– Perguntaram se iria acompanhá-los. Fiquei em silêncio. Um deles, então, pediu-me que experimentasse a braçadeira. Ao colocar, fui fotografado pelo JB, que publicou com um título tipo: “Chefe de Polícia entra em greve”. Fui demitido, lógico.
DA DELEGACIA PARA A ASSEMBLEIA
Eleito com cerca de 25 mil votos, foi o terceiro em uma bancada com sete deputados. Deixou o PT quando Benedita da Silva, vice-governadora, assumiu o governo do Estado porque o governador Anthony Garotinho afastou-se para sua mulher, Rosinha, se candidatar. Na época, ele justificou em carta ao partido:
– O partido mudou muito e está desfigurado. Era um partido socialista, distante do poder. Hoje, virou um partido social-democrata e demasiadamente flexível.