FOLHA.COM 04/02/2014 03h00
O prefeito Bill DeBlasio propôs um acordo para encerrar uma longa disputa judicial em torno da política "stop and frisk", adotada pelo Departamento de Polícia de Nova York. Entidades ligadas a movimentos de defesa de direitos contestavam a constitucionalidade da prática de parar e revistar pessoas com base na "suspeita razoável", por parte do policial, de que elas cometem ou estão por cometer alguma ilicitude.
Por exemplo: aquele negão ou aquele chicano parados ali esquina –pode-se suspeitar razoavelmente – estão vendendo ou estão por vender ou drogas.
E foi justamente sobre essa população que o "stop and frisk" avançou. Mais de 80% das "gerais", segundo levantamento relativo a 2012, foram aplicadas em negros e latinos –que são pouco mais da metade da população da cidade.
Se as vítimas preferenciais fossem jovens brancos de classe média que frequentam a night ou executivos energéticos de Wall Street que viram a noite, o problema seria o mesmo. O "stop and frisk" foi considerado inconstitucional por uma juíza, quando já eram patentes os excessos contra os direitos de indivíduos, indevidamente discriminados por critérios étnicos.
Apesar de tudo, o prefeito Michael Bloomberg –que fez bem à cidade– não poderia recuar. Defendeu o DPNY na Justiça e foi mantendo sua política. Mas na democracia os ventos costumam mudar. O pessoal da segunda classe elegeu um prefeito com uma agenda de redução das desigualdades e a prática foi interrompida.
A polícia de Nova York é da cidade, não do Estado. Do ponto de vista técnico, a circunscrição local favorece o conhecimento e o domínio do território. Politicamente, aumenta a sensibilidade da área de segurança às demandas e pressões da população. Isso inclui enfrentar o crime com eficiência e respeitar as leis. Obviamente que abusos são cometidos –e o próprio "stop and frisk" se transformou em mais um deles.
Pode ser apenas um lema ou uma farsa marqueteira, mas em todas as "viaturas" do DPNY está escrito "cortesia, profissionalismo, respeito". Bem diferente do emblema –que não é apenas marketing – da caveira atravessada por espada e armas de fogo, com que a "tropa de elite" da polícia do Rio se apresenta à sociedade.
A crise da polícia brasileira é mais do que uma "suspeita razoável". É uma evidência que se renova cotidianamente. Com nuances para melhor ou pior, temos nas ruas tropas militares que empregam a violência como método, não sabem o que são direitos constitucionais, deixam-se com frequência associar ao crime e conseguem resultados insatisfatórios no cumprimento de sua missão. Ou então temos uma Polícia Civil bigoduda que, por outros caminhos, atua da mesma forma.
Reiteradamente casas são invadidas em "rolezinhos" policiais pelas favelas, sem nenhuma autorização judicial; jovens "suspeitos" são submetidos a torturas e humilhações; pessoas desarmadas são alvejadas e "marginais" são eliminados, com a aplicação sumária da pena de morte.
Causa-me espanto que os nossos ilustres paladinos da democracia liberal e dos direitos individuais não deem muita bola para isso. A ideia de quem é indivíduo e goza de direitos parece ainda muito curta no nosso liberalismo com punho de rendas. E já que criticar a violência policial passou a ser coisa de "marxista pé-rapado" então vamos apoiá-la.
Alguém certamente terá fórmulas para mudar a polícia. Fecha essa, muda aquela, cria aquela outra etc. Já li sobre o assunto. Não sei. Simpatizo com a ideia de retirar da Constituição as restrições atuais e abrir espaço para modelos diversificados – em alguns casos metropolitanos ou municipais.
De qualquer forma, parece claro que a polícia brasileira precisa passar por um processo de profundo reordenamento e de desmilitarização. A PM deveria progressivamente funcionar menos como batalhão de soldados e mais como polícia inteligente e técnica, que presta um serviço público e responde à comunidade –tanto nos resultados quanto no respeito aos direitos. Cuidados análogos merece a Polícia Civil –outra encrenca institucional.
Como diz um amigo, até as padocas já mudaram de padrão no Brasil, por que não as polícias?
O prefeito Bill DeBlasio propôs um acordo para encerrar uma longa disputa judicial em torno da política "stop and frisk", adotada pelo Departamento de Polícia de Nova York. Entidades ligadas a movimentos de defesa de direitos contestavam a constitucionalidade da prática de parar e revistar pessoas com base na "suspeita razoável", por parte do policial, de que elas cometem ou estão por cometer alguma ilicitude.
Por exemplo: aquele negão ou aquele chicano parados ali esquina –pode-se suspeitar razoavelmente – estão vendendo ou estão por vender ou drogas.
E foi justamente sobre essa população que o "stop and frisk" avançou. Mais de 80% das "gerais", segundo levantamento relativo a 2012, foram aplicadas em negros e latinos –que são pouco mais da metade da população da cidade.
Se as vítimas preferenciais fossem jovens brancos de classe média que frequentam a night ou executivos energéticos de Wall Street que viram a noite, o problema seria o mesmo. O "stop and frisk" foi considerado inconstitucional por uma juíza, quando já eram patentes os excessos contra os direitos de indivíduos, indevidamente discriminados por critérios étnicos.
Apesar de tudo, o prefeito Michael Bloomberg –que fez bem à cidade– não poderia recuar. Defendeu o DPNY na Justiça e foi mantendo sua política. Mas na democracia os ventos costumam mudar. O pessoal da segunda classe elegeu um prefeito com uma agenda de redução das desigualdades e a prática foi interrompida.
A polícia de Nova York é da cidade, não do Estado. Do ponto de vista técnico, a circunscrição local favorece o conhecimento e o domínio do território. Politicamente, aumenta a sensibilidade da área de segurança às demandas e pressões da população. Isso inclui enfrentar o crime com eficiência e respeitar as leis. Obviamente que abusos são cometidos –e o próprio "stop and frisk" se transformou em mais um deles.
Pode ser apenas um lema ou uma farsa marqueteira, mas em todas as "viaturas" do DPNY está escrito "cortesia, profissionalismo, respeito". Bem diferente do emblema –que não é apenas marketing – da caveira atravessada por espada e armas de fogo, com que a "tropa de elite" da polícia do Rio se apresenta à sociedade.
A crise da polícia brasileira é mais do que uma "suspeita razoável". É uma evidência que se renova cotidianamente. Com nuances para melhor ou pior, temos nas ruas tropas militares que empregam a violência como método, não sabem o que são direitos constitucionais, deixam-se com frequência associar ao crime e conseguem resultados insatisfatórios no cumprimento de sua missão. Ou então temos uma Polícia Civil bigoduda que, por outros caminhos, atua da mesma forma.
Reiteradamente casas são invadidas em "rolezinhos" policiais pelas favelas, sem nenhuma autorização judicial; jovens "suspeitos" são submetidos a torturas e humilhações; pessoas desarmadas são alvejadas e "marginais" são eliminados, com a aplicação sumária da pena de morte.
Causa-me espanto que os nossos ilustres paladinos da democracia liberal e dos direitos individuais não deem muita bola para isso. A ideia de quem é indivíduo e goza de direitos parece ainda muito curta no nosso liberalismo com punho de rendas. E já que criticar a violência policial passou a ser coisa de "marxista pé-rapado" então vamos apoiá-la.
Alguém certamente terá fórmulas para mudar a polícia. Fecha essa, muda aquela, cria aquela outra etc. Já li sobre o assunto. Não sei. Simpatizo com a ideia de retirar da Constituição as restrições atuais e abrir espaço para modelos diversificados – em alguns casos metropolitanos ou municipais.
De qualquer forma, parece claro que a polícia brasileira precisa passar por um processo de profundo reordenamento e de desmilitarização. A PM deveria progressivamente funcionar menos como batalhão de soldados e mais como polícia inteligente e técnica, que presta um serviço público e responde à comunidade –tanto nos resultados quanto no respeito aos direitos. Cuidados análogos merece a Polícia Civil –outra encrenca institucional.
Como diz um amigo, até as padocas já mudaram de padrão no Brasil, por que não as polícias?
Marcos Augusto Gonçalves escreve para a Folha de Nova York. É editorialista e colunista do jornal. É autor de 'Pós Tudo - 50 Anos de Cultura na Ilustrada' (Publifolha, 2008) e de '1922 - A semana que Não Terminou' (Cia das Letras, 2012).
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