REVISTA ISTO É N° Edição: 2219, 21.Mai.12 - 18:16
Quatro meses depois da desastrada operação da PM, as famílias desalojadas ainda não conseguiram retomar a rotina. Mobílias destruídas, crianças sem pais e sem escola formam o triste mosaico de sonhos despedaçados
Rachel CostaA operação de retirada das famílias de Pinheirinho tal qual foi feita tem sido muito criticada. “Há uma equipe de juristas trabalhando para finalizar o texto da denúncia que será encaminhado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, fala o defensor público Jairo Salvador, que acompanha o caso. Quando a polícia bateu à porta de Tanice, por exemplo, só houve tempo para ela pegar a pasta com documentos, um punhado de roupas para Isabelle, o carrinho e a banheira da bebê e a cachorra vira-lata Kelly. “Ainda levei muito. Teve gente que não conseguiu tirar nem os documentos”, diz. Desde então, ela iniciou uma romaria em busca de um novo lar. Já passou por abrigo, cortiço e agora está em um barracão numa área desocupada pela Defesa Civil em 2011, após um deslizamento. Ali estão algumas das famílias de Pinheirinho, o que vem sendo investigado pela Defensoria Pública. Há uma denúncia de que a própria prefeitura teria levado cerca de 20 famílias para essa área de risco. O poder público nega. Em meio à polêmica, resta a incerteza para quem está lá, pois há uma liminar pedindo a reintegração do local.
RISCO
Sem ter para onde ir, vários ex-moradores de Pinheirinho estão em
área desapropriada pela Defesa Civil após deslizamento em 2011
Refazer a casa é um exercício diário de ignorar as perdas e lutar para ter de volta o que foi perdido. Todos os meses, o boleto das prestações a vencer lembra Tanice do guarda-roupas, da cômoda e da máquina de lavar que ela havia acabado de comprar e ainda lhe custam R$ 230 mensais. Ela já não tem mais nenhum dos bens, mas deve ainda oito parcelas à loja. Além deles, se foram as duas batedeiras profissionais, os bicos de confeitar, as formas, o liquidificador e os vasilhames que usava para cozinhar. Tanice é salgadeira e doceira profissional e vivia da renda dos seus quitutes. Sem o equipamento, improvisa tecendo encomendas de crochê e com o auxílio-moradia de R$ 500 – pago a 1.630 famílias de Pinheirinho, de acordo com a Prefeitura. Para trabalhar fora, precisaria deixar Isabelle em uma creche, mas, mesmo com o papel assinado pela assistente social, ela não consegue vaga. Desde que perdeu a casa, Tanice gasta seus dias tentando resolver problemas. Do lar em Pinheirinho, restou só um cartão com o número 633, etiqueta dada pela polícia durante a desocupação e que lhe valeria o direito de recuperar todos os bens que estavam dentro do imóvel, o que nunca aconteceu. “Pus essa casa de pé com o dinheiro do meu trabalho. A gente sabe que casa para todo mundo o governo não tem condição de dar. Desse então o terreno e a gente construía.”
Não só bens materiais foram perdidos com a remoção. O convívio social também foi reduzido a frangalhos. O êxodo forçado fez os moradores se espalharem por mais de uma dezena de bairros de São José dos Campos. “Quando falamos em direito à moradia, não estamos dizendo apenas da casa. Ela é uma espécie de porta de entrada para os outros direitos, como educação, saúde, trabalho, privacidade”, afirma Raquel Rolnik, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia adequada. Ouvir os relatos dos retirados de Pinheirinho é atestar que nada disso foi levado em conta durante a operação policial. Há 620 processos de ex-moradores correndo na Justiça – reclamando desde a perda do mobiliário, até a morte de animais de estimação e denúncias de violência policial. “Eles não podiam ter feito a remoção de uma hora para a outra”, critica Raquel, que, como relatora da ONU, enviou uma carta ao governo brasileiro pedindo ao poder público federal que se posicione sobre o assunto.
A história da família de Tanice ilustra bem o impacto da reintegração de posse na vida dos ex-moradores. Enquanto viveu em Pinheirinho, ela e a irmã Tânia Rosilene Martins, 48 anos, eram vizinhas. Agora cada uma está em um canto da periferia de São José dos Campos, distantes 20 quilômetros. “Ligo para a Tanice todos os dias”, diz Tânia. Além da irmã, Tânia teve de se separar da filha do meio, Gisele, 26 anos, grávida e que foi morar com a avó paterna. Restou só a filha mais nova, Tainara, de 11 anos. As duas vivem em uma espécie de cortiço onde pagam R$ 400 de aluguel mais R$ 40 por pessoa para custear água e luz. O valor dá direito a menos de 30 m² de um espaço precário. “Tem goteiras na sala e no quarto. Quando a gente liga o chuveiro, cai a luz”, afirma Tânia.
A grande alegria de Tânia atualmente é ter novamente Elisângela Silva, 39 anos, morando ao seu lado. “Pulei quando a vi chegando aqui”, diz, relembrando o dia em que se deparou com a ex-vizinha de porta subindo as escadas do cortiço. A mesma reação teve Iane, filha mais velha de Elisângela e amiga de Tainara. “Estava com medo de chegar aqui e não ter ninguém da minha idade”, conta ela, que tem 11 anos, assim como a filha de Tânia. Foi uma dor a menos reencontrar a amiga de Pinheirinho. “Na escola nova já tinha sido muito difícil fazer amizades”, diz a menina, que teve de ser transferida. Iane foi uma das crianças que presenciaram a desocupação. Ela se lembra do policial mandando a família sair e da angústia de não conseguir fazer caber seus pertences na sacolinha em que pôs tudo o que pôde nos 15 minutos de prazo para desocupar a casa onde viveu por cinco anos. Sobre as coisas que perdeu e sente falta, é singela: sente saudade das amigas que nunca mais viu e queria de volta o diploma de participação nas oficinas do Proerd, programa de resistência às drogas da Polícia Militar.
Mesmo após quatro meses da retirada das famílias de Pinheirinho, muitos moradores ainda batalham para ter de volta os bens recolhidos pela prefeitura antes da passagem dos tratores. Uma delas é a costureira Sônia Maria da Silva, 43 anos. Depois da saída forçada, ela voltou por três dias consecutivos à área para tentar pegar sua mobília. Não conseguiu e recebeu a informação de que suas coisas seriam enviadas para um galpão, à beira da rodovia Presidente Dutra. Desde então, realiza com frequência um cansativo périplo até o local na esperança de reaver seus bens. Nas mãos, leva sempre o cartão em que se vê impresso “718”, número colocado pelos policias na sua casa. “Já paguei carreto duas vezes para pegar minhas coisas, R$ 100 cada, e até agora não consegui tirar nada”, afirma Sônia, que desistiu de chamar o caminhão e agora vai sozinha ao galpão. Lá, a cena se repete semanalmente: ninguém vem atendê-la. Enquanto não consegue refazer o lar, a costureira deixa a filha Giselia, 8 anos, e a sobrinha Raíssa, 12, com a irmã, em São Paulo. “Minha filha chora até hoje e pede para voltar. Na cabeça dela, a casa ainda existe.” Mas Pinheirinho não passa de um retrato desbotado estampado nas camisas de protesto de seus ex-moradores.
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