O GLOBO, 06/07/2013
Panorama Carioca
Gilberto Scofield Jr
Esbarrei em dois livros que ajudam a enxergar, em níveis mais profundos, as manifestações no Rio: do protesto dos moradores da Maré à gritaria na porta do governador Sérgio Cabral, no Leblon, passando pela marcha dos moradores de Rocinha e Vidigal pela Niemeyer. Um dos livros é “Cidadania, um projeto em construção”, organizado por André Botelho e Lilia Schwarcz.
Ele reúne ensaios sobre minorias, Justiça e direitos nos centros urbanos brasileiros. O outro é “Até o último homem”, organizado por Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira, com ensaios sobre a administração policial das comunidades cariocas pós-UPP e as ações de segurança anteriores. O primeiro traz o debate sobre direitos humanos e diferenças sociais, raciais, religiosas e de gênero a partir de uma visão sociológica da Academia. O segundo avalia a ação policial no Rio a partir de uma visão de dentro das comunidades.
Curiosamente, cada um com seu viés, os livros convergem para exibir o grau de hipocrisia e má vontade com que todos tratam — os cariocas e seus governos — o que não é status quo. Pobres, negros, mulheres, gays, moradores periféricos e de favelas permanecem no Rio, em pleno século XXI, em constante batalha por inclusão. É óbvio que ninguém precisa ler os livros para perceber o fenômeno, mas a maneira como essa conclusão é construída nos ensaios é especialmente relevante numa cidade em transformação como o Rio. Afinal, é preciso pensar o pós-pacificação. E apesar do trabalho da UPP e da inegável sensação de mais segurança, a ideia de “Cidade Partida” — brilhantemente cunhada pelo querido Zuenir Ventura em 1994 e que vai bem além da questão da violência — continua sendo uma triste realidade.
Em particular, os dois livros trazem boas reflexões sobre a necessidade de mudanças na nossa polícia, um assunto que cresceu em importância depois da onda de protestos. O tema precisa ser mais debatido pelos cariocas, especialmente agora, em meio ao processo de desmantelamento das redes ostensivas do crime organizado — pela mesma polícia. E em meio a bizarras ligações entre as milícias e a política tradicional. Os ensaios também desafiam a lógica da segurança da ocupação policial pura e simples, sem a devida ocupação político-jurídica das áreas de conflito, com oferta de serviços que resgatem a cidadania.
Em “Cidadania”, no ensaio “Violência e crime: sob o domínio do medo na sociedade brasileira”, o sociólogo Sérgio Adorno vai cirurgicamente no ponto: “As agências policiais custam a reconhecer a necessidade de reforma institucional, seja em suas práticas de policiamento repressivo e preventivo, seja nas técnicas de investigação policial, assim como nas suas formas de recrutamento e formação profissional de seus quadros. Muitos policiais persistem acreditando que o problema do controle do crime e da violência é de exclusiva competência das autoridades policiais, daí as demandas em torno de mais armas e reaparelhamento das forças. Ignoram que segurança pública é, cada vez mais, objeto de planos de ação que envolvem não apenas conhecimento especializado, mas também parcerias entre governos e organizações da sociedade civil”.
“Até o último homem” peca por certa ingenuidade esquerdista. Em um trecho, diz que a pacificação é “ditadura das elites”, mas ignora a rotina sob o jugo do tráfico, tolerado com certa complacência. Em outro, equipara polícia a milícia, como se fossem duas cabeças opressoras da mesma hidra. A imagem pode ser boa, mas polícia é instituição de Estado. Admite — e precisa de — controle. Milícia é falta de Estado. É crime puro e simples. Mas o livro acerta mais do que erra ao diagnosticar que as UPPs não acabaram com as violentas incursões do Bope nas comunidades pacificadas (era disso que reclamava a Maré). Ao denunciar a persistência do tráfico e como a corrupção policial ainda é um risco. Ou a explicar como a militarização da ocupação é opressora aos moradores.
Como diz Adorno, a pacificação não é somente policial. E não é só ocupação. É processo.
Sempre fui um fã dos pratos de bacalhau do Bar do Serafim, no Baixo Alice. O boteco ainda serve uma comida portuguesa excelente, mas a coisa desanda quando os garçons desaparecem ou te ignoram e você tem de levantar para pegar o cardápio no balcão. Garçom é para olhar para o cliente, não para a TV.
Gilberto Scofield Jr
Esbarrei em dois livros que ajudam a enxergar, em níveis mais profundos, as manifestações no Rio: do protesto dos moradores da Maré à gritaria na porta do governador Sérgio Cabral, no Leblon, passando pela marcha dos moradores de Rocinha e Vidigal pela Niemeyer. Um dos livros é “Cidadania, um projeto em construção”, organizado por André Botelho e Lilia Schwarcz.
Ele reúne ensaios sobre minorias, Justiça e direitos nos centros urbanos brasileiros. O outro é “Até o último homem”, organizado por Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira, com ensaios sobre a administração policial das comunidades cariocas pós-UPP e as ações de segurança anteriores. O primeiro traz o debate sobre direitos humanos e diferenças sociais, raciais, religiosas e de gênero a partir de uma visão sociológica da Academia. O segundo avalia a ação policial no Rio a partir de uma visão de dentro das comunidades.
Curiosamente, cada um com seu viés, os livros convergem para exibir o grau de hipocrisia e má vontade com que todos tratam — os cariocas e seus governos — o que não é status quo. Pobres, negros, mulheres, gays, moradores periféricos e de favelas permanecem no Rio, em pleno século XXI, em constante batalha por inclusão. É óbvio que ninguém precisa ler os livros para perceber o fenômeno, mas a maneira como essa conclusão é construída nos ensaios é especialmente relevante numa cidade em transformação como o Rio. Afinal, é preciso pensar o pós-pacificação. E apesar do trabalho da UPP e da inegável sensação de mais segurança, a ideia de “Cidade Partida” — brilhantemente cunhada pelo querido Zuenir Ventura em 1994 e que vai bem além da questão da violência — continua sendo uma triste realidade.
Em particular, os dois livros trazem boas reflexões sobre a necessidade de mudanças na nossa polícia, um assunto que cresceu em importância depois da onda de protestos. O tema precisa ser mais debatido pelos cariocas, especialmente agora, em meio ao processo de desmantelamento das redes ostensivas do crime organizado — pela mesma polícia. E em meio a bizarras ligações entre as milícias e a política tradicional. Os ensaios também desafiam a lógica da segurança da ocupação policial pura e simples, sem a devida ocupação político-jurídica das áreas de conflito, com oferta de serviços que resgatem a cidadania.
Em “Cidadania”, no ensaio “Violência e crime: sob o domínio do medo na sociedade brasileira”, o sociólogo Sérgio Adorno vai cirurgicamente no ponto: “As agências policiais custam a reconhecer a necessidade de reforma institucional, seja em suas práticas de policiamento repressivo e preventivo, seja nas técnicas de investigação policial, assim como nas suas formas de recrutamento e formação profissional de seus quadros. Muitos policiais persistem acreditando que o problema do controle do crime e da violência é de exclusiva competência das autoridades policiais, daí as demandas em torno de mais armas e reaparelhamento das forças. Ignoram que segurança pública é, cada vez mais, objeto de planos de ação que envolvem não apenas conhecimento especializado, mas também parcerias entre governos e organizações da sociedade civil”.
“Até o último homem” peca por certa ingenuidade esquerdista. Em um trecho, diz que a pacificação é “ditadura das elites”, mas ignora a rotina sob o jugo do tráfico, tolerado com certa complacência. Em outro, equipara polícia a milícia, como se fossem duas cabeças opressoras da mesma hidra. A imagem pode ser boa, mas polícia é instituição de Estado. Admite — e precisa de — controle. Milícia é falta de Estado. É crime puro e simples. Mas o livro acerta mais do que erra ao diagnosticar que as UPPs não acabaram com as violentas incursões do Bope nas comunidades pacificadas (era disso que reclamava a Maré). Ao denunciar a persistência do tráfico e como a corrupção policial ainda é um risco. Ou a explicar como a militarização da ocupação é opressora aos moradores.
Como diz Adorno, a pacificação não é somente policial. E não é só ocupação. É processo.
Sempre fui um fã dos pratos de bacalhau do Bar do Serafim, no Baixo Alice. O boteco ainda serve uma comida portuguesa excelente, mas a coisa desanda quando os garçons desaparecem ou te ignoram e você tem de levantar para pegar o cardápio no balcão. Garçom é para olhar para o cliente, não para a TV.
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