ZERO HORA ESPECIAL 19 de novembro de 2012 | N° 17258
JOGO DO BICHO
PARA
QUE A RODA DE APOSTAS SIGA GIRANDO, É NECESSÁRIO QUE OS HOMENS DA LEI
FECHEM OS OLHOS PARA A CONTRAVENÇÃO. É O QUE REVELA A REPORTAGEM DE HOJE
DA SÉRIE QUE MOSTRA COMO O JOGO ILEGAL PROSPERA NO ESTADO
Banqueiros
do jogo do bicho são os maiores corruptores de policiais no Rio Grande
do Sul. Compram informações em DPs, recrutam PMs em quartéis para
executar desafetos, associam-se com investigadores fora da lei,
manipulam inquéritos, transformam oficiais em capangas privados.
Nos
últimos anos, dezenas de policiais civis e militares foram indiciados
pelas respectivas corregedorias por envolvimento com jogatina. Na
Polícia Civil, a maior parte dos cem inquéritos em andamento diz
respeito à corrupção policial – envolvimento com a contravenção, com o
tráfico de drogas e com o roubo e o furto de veículos. No Rio, onde o
bicho nasceu 120 anos atrás e se consolidou como um poder paralelo, a
força de sedução dos bicheiros corrói corporações, enfraquece o moral de
batalhões, abala a credibilidade de delegacias.
– É o único
crime que realmente é organizado no Brasil. Praticamente todos os
bicheiros fazem a descarga (espécie de seguro de apostas altas) com
contraventores do Rio. Quando eu era chefe de Polícia, 90% da polícia
mordia (cobrava propina). Não há jogo sem envolvimento da polícia – diz
Hélio Luz, chefe de Polícia no Rio entre 1995 e 1997 e o primeiro
delegado a denunciar a “banda podre”.
ZH constatou como a
contravenção se beneficia da parceria informal de policiais. Imaginando
conversar com um fora da lei, o apontador do jogo do bicho José Fraga,
50 anos, travou o seguinte diálogo com a reportagem:
REPÓRTER Se der algum problema com o bicheiro responsável, quem cobre uma aposta alta?
APONTADOR Aqui não tem problema. A gente tem um grupo.
REPÓRTER Que grupo?
APONTADOR
Estamos em todo o Litoral: Tramandaí, Osório, Santo Antônio, Torres,
Terra de Areia. É tudo um grupo nosso, entendeu? Vem tudo para este
homem aqui.
REPÓRTER Para quem?
APONTADOR Para o seu Mateus.
REPÓRTER O velho?
APONTADOR O velho Mateus.
REPÓRTER E os policiais não incomodam?
APONTADOR Não. No nosso grupo não tem perigo.
REPÓRTER Quanto os maquineiros estão pagando para a polícia?
APONTADOR R$ 150 por loja.
REPÓRTER Mas dá dinheiro.
APONTADOR
Claro que dá. Abre uma loja (com máquinas caça-níqueis) hoje e, em 40
dias, dá para tirar o investimento e investir em outra.
O que o
incauto revelou ao repórter, a Corregedoria da Polícia Civil havia
detectado, quatro anos atrás: Mateus Josué Sassi, 69 anos, um dos
principais bicheiros do Litoral Norte, pagava “salários” mensais para
escrivães e investigadores não o molestarem.
Pelas palavras de
Seu Zé, como Fraga é conhecido, a parceria com policiais não se encerrou
após a investigação da Cogepol, cujo resultado é o processo que tramita
na Vara Criminal de Capão da Canoa sob o número 141/2.08.0006216-4.
Pela apuração, os policiais Fabio Vivaldino dos Santos Lopes, 42 anos
(Capão da Canoa), Gerson Luís da Silva Santos, 50 anos (Tramandaí),
Edmilson Luís de Lima, 46 anos (Arroio do Sal), Silvio Roberto da Silva,
55 anos, Telvino Araújo Monti, 53 anos (ambos de Xangri-lá) e Alexandre
José Falkenbach (Cidreira), recebiam mensalmente do grupo liderado por
Mateus entre R$ 500 e R$ 1,5 mil. Hoje, quatro estão afastados e dois se
aposentaram.
Conforme denúncia à Justiça, agentes da lei e
contraventores eram explícitos ao telefone. Em uma conversa, o
investigador Gerson alerta o contraventor Dejalmo sobre uma blitz:
– Sabes aquela tua lancheria antiga, que era do Baixinho?... Parece que vão bater lá hoje...
Na
época lotado em Capão da Canoa, Fábio Vivaldino é outro enredado pelos
grampos. Para conversar com Mateus, ele usava um aparelho celular com
prefixo de outro Estado, trancava o nariz e fazia voz de pato ao
telefone.
– Virou motivo de piada na corregedoria – confidencia o corregedor da Polícia Civil Paulo Grillo.
Em abril de 2008, um dos contraventores reclamou ao telefone:
“Eu vou tirar as máquinas e não molho mais as mãos de ninguém. Tenho nojo de lidar com esses ratos.”
Recentemente,
chefes de investigação de metade das delegacias distritais de Porto
Alegre foram condenados por cobrar propina de bicheiros.
PROTEÇÃO PARA O JOGO EM DELEGACIA DE GRAVATAÍ
Um
homem temido pelos colegas de corporação. Assim pode ser descrito
Miguel de Oliveira, o Peixe, 65 anos, ex-chefe da investigações da 2ª DP
de Gravataí. Indiciado em oito inquéritos que resultaram em sete
processos, Miguel está condenado a 104 anos de prisão. O principal
deles, por proteger o bicheiro Jorge Ivan Fontela Liscano, o Mão Branca,
de quem é compadre e amigo há três décadas. Miguel permanece em
liberdade, aguardando o desfecho de recursos na Justiça.
No ano passado, enquanto esteve preso na sede do Grupo de Operações Especiais (GOE), Miguel negou a ZH envolvimento com crimes.
Entre
os crimes atribuídos a Miguel, que ingressou na polícia em 1974, um
está ligado à contravenção. Em 2007, quando traficantes eram
investigados pela venda de drogas nas imediações da Escola Antônio José
de Alencastro, em Gravataí, grampos telefônicos trouxeram à tona a
relação de Miguel com o bicheiro.
– A ligação dele com o Mão
Branca era o seu maior orgulho. Sempre dizia: este aí é gente da gente.
Ninguém toca – comenta um ex-colega.
Além de informar Mão Branca
sobre as batidas policiais, Miguel usava seu distintivo para fechar as
casas dos concorrentes do bicheiro. E também para intimidar as pessoas
que deviam dinheiro nas casas de jogos clandestinos de Mão Branca. No
processo 015/2.07.0005640-0, Miguel se declara amigo do contraventor.
Mas nega ter prestado serviços a ele. No documento, Mão Branca também
nega ter usado os serviços do seu compadre para proteger os seus
negócios com máquinas caça-níqueis.
TENENTE-CORONEL ENTRE OS SUSPEITOS
Um
tenente-coronel, cinco sargentos e 13 soldados de dois batalhões da
Capital são suspeitos de garantir a segurança de contraventores mediante
pagamento de propina.
Durante o horário de serviço, PMs teriam atuado
como capangas de donos de caça-níqueis. Um dos suspeitos, o
tenente-coronel Nelson Alexandre de Moura Menuzzi, 50 anos, pertencia ao
comando do 11º Batalhão de Polícia Militar quando sua mulher e sogro
teriam explorado máquinas na região.
O processo no qual o oficial
e 18 praças são réus soma 3 mil páginas. Entre os beneficiados pela
suposta proteção de PMs estão Tanise Menuzzi, mulher de Menuzzi, e o pai
dela, Cledi Clementino Assis Machado. Conforme denúncia à Justiça,
Tanise e Cledi “seriam sócios de casas de jogo” clandestino na área de
atuação do 11º BPM. Entre dezembro de 2008 e abril de 2010, diz o
documento, Menuzzi, que hoje comanda o presídio da PM, “deixou de
determinar diligências necessárias a fim de fechar a casa de jogos
ilegais de Cledi”.
A promotoria estima o suposto dano causado à
tropa: “O mal-estar provocado pela conduta prevaricadora do denunciado
incentivou praças a cometer ilícitos com o submundo dos caça-níqueis, na
área do 11º BPM, vários deles cobrando propina para não atuar. Outros,
atuando como seguranças em casas de jogo”.
Menuzzi tornou-se réu
em processo na Justiça Militar porque PMs denunciados na mesma ação
penal – por fazer a segurança de casas clandestinas – apontaram o
oficial. Conforme a investigação, o sargento Ricardo Arraché Gonçalves e
o soldados Mauro da Silva Santos, com outros colegas de farda, “exigiam
R$ 2 mil por semana do proprietário do Bingo Fortuna para mantê-lo em
funcionamento”.
De outros estabelecimentos na Zona Norte, PMs cobravam
valores distintos. Os soldados Peterson Werner Borges e Marcelo Neves de
Almeida teriam extorquido R$ 1,5 mil de Carlos Rayan Filho e Rodrigo da
Silva Slaski, responsáveis por uma casa de jogos na Rua Itararé. Já o
soldado Samir Parreira teria, com dois praças, repassado a localização
de viaturas, vazado operações e realizado a segurança de casas. Um
relatório do 11º BPM descreve o sogro de Menuzzi:
“Considerado um
dos mais ferozes donos de casas de jogo, é temido por suas supostas
ligações e indicado pelos demais proprietários de casas de jogos como
responsável pela queda dos concorrentes, pois, segundo suas palavras,
tem as costas quentes e o comando está ao seu lado”.
CONTRAPONTOS
O
QUE DIZ JAIRO LUÍS CUTINSKI, ADVOGADO DOS PMS RICARDO ARRACHÉ
GONCALVES, PETERSON WERNER BORGES, MAURO DA SILVA SANTOS E MARCELO NEVES
DE ALMEIDA: Nenhum deles recebe dinheiro de contraventores. Muitas
pessoas entraram no processo sem que tivessem envolvimento com bingos.
Há inclusive escutas telefônicas questionadas na Justiça. Há furos na
investigação. O processo, ainda em fase de instrução, foi desencadeado
de forma precária e as provas são frágeis.
O QUE DIZ ANDRÉA FERRARI,
ADVOGADA DE SAMIR PARREIRA: Ele não tinha envolvimento com a exploração
de caça-níqueis. Meu cliente fez, algumas vezes, a segurança de uma
garagem sem saber que, próximo do local, funcionava um estabelecimento
com caça-níqueis.
O QUE DIZ O TENENTE-CORONEL NELSON ALEXANDRE DE MOURA
MENUZZI: Não tenho nada a declarar. Quem pode se manifestar é o meu
advogado. O QUE DIZ O ADVOGADO LUIZ CARLOS FERREIRA: ZH ligou para
Ferreira, deixou mensagem de voz, enviou mensagem de texto e e-mail, mas
ele não retornou aos chamados.
ESQUEMA NA SERRA TERIA 14 POLICIAIS
Caxias
do Sul transformou-se no paraíso dos contraventores. Criminosos que
atuavam em grupos independentes e exploravam 60 mil caça-níqueis
contariam com proteção de 14 policiais – policiais civis, PMs e um
agente federal aposentado. Denominada Oitava Praga, a operação da
Polícia Federal desbaratou, a partir de grampos policiais e documentos
apreendidos, quatro facções criminosas. A investigação detalhou a
ligação entre agentes da lei e donos de máquinas programadas para nunca
perder.
– O esquema de caça-níqueis estava ficando violento como no Rio – diz o delegado Noerci da Silva Melo.
Desmembrado
em seis processos, que tramitam em segredo de Justiça, as ações penais
documentam parcerias entre contraventores e policiais. Disnei Artur
Ribeiro integrava um dos grupos que fornecia caça-níqueis para o Vale do
Sinos, a Serra, a Capital e a Fronteira. Em um dos depoimentos, Disnei
detalhou uma suposta transação ocorrida numa DP da Capital: “Em agosto
de 2007, dia 14, foi até a 4ª DP, encaminhado até a sala de investigação
por um policial de cor negra. Havia mais dois policiais. Um deles pediu
R$ 50 mil para que não levassem Leocir Montovani para o presídio... Os
policiais aceitariam R$ 35 mil e, após, admitiram R$ 30 mil. Ele disse
que conseguiria R$ 20 mil até as 18h. Entregou o resto na outra semana”.
Em outro trecho, Disnei identifica os autores da suposta extorsão:
“Olhando
a foto de Carlos Carvalho (Carlos Ezael Alfaro Carvalho), reconheceu
como sendo o policial para quem entregou R$ 20 mil. Olhando para a
fotografia de Leandro Laquini dos Santos reconheceu como sendo o
policial para quem entregou R$ 10 mil. Olhando a fotografia de Sidinei
Oliveira, reconhece como sendo o policial de cor negra”. Na Justiça,
Disnei voltou atrás e negou a corrupção. Lotado na Capital, o
investigador Luiz Henrique Reis Jacques também é réu no processo. A PF
flagrou 145 ligações entre Jacques e o contraventor Marco Antonio
Mariano, um dos sócios do Bingo Real Palace. Reis foi condenado em
primeira instância a três anos e oito meses por formação de quadrilha e
corrupção passiva. Ele recorreu. Conforme a Corregedoria da Polícia
Civil, está afastado das funções.
CONTRAPONTOS
CARLOS
EZAEL ALFARO CARVALHO (À JUSTIÇA): diz que nunca deu proteção a pessoa
envolvida com crime.
LEANDRO LAQUINI DOS SANTOS (À JUSTIÇA): Negou
envolvimento com contraventores.
SIDNEI GALEÃO OLIVEIRA (À JUSTIÇA):
Nunca passei informações privilegiadas a qualquer um dos citados membros
da organização criminosa investigada, nunca recebi vantagem indevida
por informações privilegiadas nem por liberação ou apreensão de máquinas
apreendidas ou a não apreensão delas.
LUIZ HENRIQUE REIS JACQUES (À
JUSTIÇA): Nunca instruí membros de organizações criminosas ou
proprietários de bingos de como proceder diante de operações policiais.
Nunca recebi qualquer quantia a título de contrapartida de informação.
O
QUE DIZ ALBERTO IVÁN ZAKIDALSKI, ADVOGADO DE DISNEI ARTUR RIBEIRO: Meu
cliente não ofereceu dinheiro à polícia. Ele voltou atrás no depoimento à
Justiça. O primeiro depoimento, em que havia dito que deu dinheiro a
policiais, foi realizado sem acompanhamento de um advogado.
O QUE DIZ
DANIEL GERBER, ADVOGADO DE MARCO ANTONIO MARIANO: O meu cliente foi
condenado em primeira instância por contrabando e corrupção policial.
Estamos recorrendo. No caso da corrupção policial: vários policiais
jogavam na casa, mas jamais meu cliente comprou informação ou qualquer
coisa semelhante.
SOBRE ZERO HORA, 06/12/2012
Em relação ao texto “Tenente-coronel entre os suspeitos”, publicado na página 5 do dia 19 de novembro, esclareço: o tenente-coronel da BM Nelson Menuzzi, na corporação há 30 anos, construiu na carreira um patrimônio moral e funcional inabalável, sem mácula disciplinar. Desde 2010, comanda o Batalhão de Polícia de Guardas (BPG), órgão encarregado da segurança dos presídios (menos o Central) e escoltas de militares em Porto Alegre. Em decorrência da avassaladora notícia divulgada em ZH, postulou junto ao comando a imediata instauração de Conselho de Justificação visando comprovar, no devido processo legal, a sua mais completa isenção em relação às graves acusações contidas na publicação.
No processo da Justiça Militar, responde pelos fatos noticiados onde provará a sua inocência no devido tempo, inclusive postulou pelo desmembramento do processo com o propósito de enfrentar com mais celeridade o julgamento do Conselho Especial de Justiça. O motivo de ter sido denunciado se deve a uma estratégia da defesa dos acusados, do tipo “colocar o bode na sala, ou um tubarão no aquário ornamental caseiro”.
Luiz Carlos Ferreira, Advogado da parte