Prova ilícita no cumprimento de mandados por policiais militares - Por Thiago Almeida Lacerda, Delegado de Polícia Civil | RS Jurídico, 08/12/2010.
Com magnífico apoio jurídico e aplaudido fundamento, o delegado Thiago Lacerda, da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, produziu um parecer através de um despacho que expõe a ilegalidade de buscas, apreensões e diligências promovidas pela Polícia Militar.
Alguns juízes ainda insistem em permanecer no erro de determinar aos milicianos que exerçam tal atividade que compete somente às polícia judiciárias.
Veja na íntegra o valioso material que deve ser usado por todas as autoridades que atuam na atividade criminal.
DESPACHO/GABINETE: Ref. Ocorrência: 100425/2010/
Examinando a ocorrência apresentada, expeço o seguinte despacho:
O Código de Processo Penal em seu artigo 13, inciso II, traz expressamente que, compete às autoridades policiais (delegados de polícia) realizar as diligências requisitadas pelo Ministério Público ou pelo Juiz. Apresentado à ocorrência, constatou-se que foi expedido mandado de busca e apreensão pela Excelentíssima Juíza de Direito da Comarca de Viamão/RS, no dia 06 de Dezembro de 2010, conforme processo nº 039/2.10.000*****
De início, convém expor que esta Autoridade Policial detém o entendimento de que o requerimento e o cumprimento de mandado de busca e apreensão por órgão que não detém competência/atribuição para tanto resulta em PROVA ILÍCITA que não pode encontrar respaldo judicial, visto que o Juiz de Direito é aquele responsável pela legalidade dos atos processuais e procedimentais.
Nota-se que a Excelentíssima magistrada determinou, atendendo a requerimento do Ministério Público, o cumprimento do mandado de busca e apreensão pelo 18º Batalhão de Polícia Militar. Admitir como lícita as provas produzidas neste mandado é o mesmo que aceitar que uma autoridade judicial determine que a Guarda Municipal, ou funcionários da EPTC realizem tal diligência.
Vale lembrar que quem detém as funções de Polícia Judiciária segundo o texto constitucional são somente as Polícias Civis e Federal, excluindo os casos de crimes militares.
Outro fato que causa dúvida a esta autoridade policial, que neste momento preside este ato, é a menção na ordem judicial expedida: "permita o ingresso da autoridade policial requerente e seus agentes". Autoridade Policial requerente, presume-se que seja um Delegado de Polícia e ainda vale salientar que a conjunção aditiva "e" presume que o cumprimento do mandado de busca e apreensão domiciliar deve ser conduzida por Delegado de Polícia (autoridade policial) juntamente com seus agentes da autoridade. O fato de somente agentes da autoridade cumprirem o mandado judicial já atentam contra o mesmo, conforme consta na oitiva do condutor do flagrante.
Para fins de esclarecimento, a Autoridade Policial tem papel que merece destaque dentro da estrutura da Polícia Judiciária. Foi ela citada no texto constitucional ?A Polícia Civil deve ser dirigida por delegados de polícia de carreira? e na legislação processual penal ?A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais?. Importante frisar que hoje se confundem a ideia de autoridade policial e delegado de polícia, sendo verdadeiros sinônimos dentro do nosso ordenamento jurídico, não podendo o conceito de autoridade policial, vim desvinculado do de delegado de polícia ou ser extensivos a outras definições.
Se a Constituição Federal, ressalvou que a Polícia Civil será dirigida por delegados de carreira e o Código de Processo Penal que a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais, temos aqui que esta nomenclatura deve estar intimamente relacionada aos delegados de polícia, entender o contrário seria desvirtuar o próprio interesse do Poder Constituinte Originário. Neste sentido, temos ilustres doutrinadores como:
Julio Fabbrini Mirabete: O conceito de ?autoridade policial? tem seus limites fixados no léxico e na própria legislação processual. ?Autoridade? significa poder, comando, direito e jurisdição, sendo largamente aplicada na terminologia jurídica a expressão como o ?poder de comando de uma pessoa?. O ?poder de jurisdição? ou ?o direito que se assegura a outrem para praticar determinados atos relativos a pessoas, coisas ou atos?. É o servidor que exerce em nome próprio o poder do Estado, tomando decisões, impondo regras, dando ordens, restringindo bens jurídicos e direitos individuais, tudo nos limites da lei. Não têm esse poder, portanto, os agentes públicos que são investigadores, escrivães, policiais militares, subordinados que são às autoridades respectivas. Na legislação processual comum, aliás, só são conhecidas duas espécies de ?autoridades?: a autoridade policial, que é o Delegado de Polícia, e a autoridade judiciária, que é o juiz de direito. Somente o Delegado de Polícia e não qualquer agente público investido de função preventiva ou repressiva tem, em tese, formação técnica profissional para classificar infrações penais, condição indispensável para que seja o ilícito praticado incluído ou não como infração de menor potencial ofensivo. (MIRABETE, 1997, p. 60 e 61 ? Juizados Especiais Criminais ? Comentários Jurisprudência e Legislação)
Guilherme de Souza Nucci: ?Devemos entender tratar-se somente do delegado de polícia. Este seria a autoridade policial autêntica. Investigadores de polícia ou detetives, bem como policiais militares, devem ser considerados apenas agentes da autoridade policial?. (NUCCI, 2009, p. 241- Codigo de Processo Penal Comentado ? 8ª ed.)
Se restar ainda dúvidas, vejamos a luz do nosso ordenamento jurídico. É notório que o Código de Processo Penal estabelece algumas atribuições próprias da autoridade policial. Me questiono então se o Policial Militar é a autoridade com atribuição para instaurar inquérito (§3º do artigo 5º do CPP)? Se o policial militar é a autoridade com atribuição para proceder à reprodução simulada dos fatos criminais (artigo 7º do CPP)? Se o policial militar é a autoridade competente para lavrar Auto de Prisão em Flagrante (artigo 304 do CPP)? Se o policial militar é a autoridade com atribuição para pedir prisão temporária (artigo 2º L. 7960/1989)? Porque se for, realmente toda minha formação jurídica composta por quatro pós-graduações em quatro Universidades distintas e um bacharelado na Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro está colocada em xeque neste momento.
Aceitar o cumprimento e o requerimento de mandado de busca e apreensão domiciliar pela Brigada Militar como prova lícita, é o mesmo que esta autoridade dar cumprimento de um mandado de busca e apreensão expedido por um membro do Ministério Público. Ressalta-se, são órgãos distintos com funções distintas, onde o desvio de função não pode se tornar a regra em nosso ordenamento jurídico, sendo assim, evidente que se trata de prova ilícita.
Importante destacar ainda que o Município de Viamão possui 3 (três) delegacias de polícia, todas elas ocupadas por Delegados Titulares e ainda uma Central de Flagrantes (DPPA) localizada no município de Alvorada que atende tanto a região de Alvorada como de Viamão em relação as situações flagranciais. Evidente que são no mínimo sete Delegados de Polícia, que são legitimados para exercerem a sua função constitucional e legal de autoridade policial dentro da Polícia Judiciária.
Qualquer usurpação de função, caracteriza desvio de função que atenta contra a lei e o Estado Democrático de Direito que se funde na Lei Máxima de nosso ordenamento jurídico ? Constituição Federal.
Portanto, atividades de polícia judiciária, como cumprimento de mandado de busca e apreensão devem ser praticados pela Polícia Civil.
Esta conotação apresentada pode ser melhor entendida ao retomarmos que no dia 20 de setembro de 2007 o Plenário do Supremo Tribunal Federal, proferiu julgamento, na Ação Direta de Inconstitucionalidade promovida pelo Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, contra ato do Governo do Paraná, ADI nº 3.614-9 ? Paraná, que põe fim à discussão, julgando inconstitucional, desta vez um Decreto baixado pelo Governo do Estado do Paraná, que normatizava o exercício das funções de polícia judiciária por oficiais da Polícia Militar.
No julgamento desta ação, que se deu por maioria, vencido o Senhor Ministro Gilmar Mendes, ocorreu no Plenário da Corte Suprema, intenso debate sobre a matéria, cujos votos trazem discussões de conteúdos extremamente esclarecedores da questão ora em discussão, razão porque, peço licença para transcrevê-los:
AÇÃO DIRETA DE CONSTITUCIONALIDADE: 3.614-9 PARANÁ
O SENHOR MINISTRO GIMAR MENDES (Relator): Tal como relatado, discute-se na presente Ação Direta a constitucionalidade do Decreto n~ 1.557/2003, do Governador do Estado do Paraná, face ao artigo 144, caput, incisos IV e V, e §§ 4° e 5°, da Constituição Federal. O referido Decreto autoriza e disciplina a atuação de Subtenentes e Sargentos da Policia Militar do Estado do Paraná no atendimento nas Delegacias de Policia Civil em municípios que não contam com servidores de carreira para o desempenho das funções de Delegado de Policia.(. . .)
No mérito não se verifica oposição entre o teor do Decreto nº 1.557/2003 do Estado do Paraná e os dispositivos constitucionais suscitados como parâmetro de controle, quais sejam:
"Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: ( . . . ) IV - polícias civis; v - polícias militares e corpos de bombeiros militares.( . . . )
§ 4° - às polícias civis, dirigidas por delegados de policia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. § 5° - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. O Decreto nº 1.557/2003 trata da atuação de Subtenentes e Sargentos da Policia Militar do Estado do Paraná no atendimento nas Delegacias de Policia Civil frente a uma circunstância extraordinária e temporária.
O "atendimento nas delegacias de Policia" (art. 1º do decreto 1.557/2003), atribuído pelo Decreto estadual ? nas condições que fixa - a determinados membros da Policia Militar, especialmente quando articulado com a obrigação de elaboração de termo circunstanciado" a ser encaminhado "à Delegacia de Policia da sede da Comarca? (art. 5º), não caracteriza per se o exercício de atividades constitucionalmente próprias da Policia Civil ("funções de policia judiciária e a apuração de infrações penais") .
É que tais atribuições não substituem - pragmaticamente - e nem pretendem substituir - normativamente - aquelas constitucionalmente designadas à Polícia Civil, que continua sendo a exclusiva responsável pela apuração das infrações penais.
O simples registro de noticias sobre um crime, que, no caso especifico se operacionaliza mediante a elaboração de "termo circunstanciado", não comprova sua ocorrência, cabendo a Polícia Civil a investigação sobre o fato. Tal atribuição não foi usurpada pelo Decreto nº 1.557/2003, que determinou expressamente em seu artigo 5° a obrigatoriedade de envio dos documentos, nesta condição e sem nenhuma outra qualificação jurídica, à Delegacia de Policia da sede da Comarca. O que se verifica, in casu, é que, ao contrário do entendimento manifestado pelo requerente, o Decreto nº 1.557/2003 não delega competência constitucional da Policia Civil à Polícia Militar. Ao contrário, submete os atos realizados pelos policiais militares no desempenho das atividades de atendimento à autoridade final da Delegacia de Polícia da sede da Comarca (art. 5º, parágrafo único), onde efetivamente se desenrolarão as funções de ?investigação? e ?inquisição? (no mesmo sentido, sobre serem tais funções as que caracterizam a singularidade constitucional das funções próprias da Polícia Civil, ADIN nº 1.570, Rel. Mauricio Correa, DJ 22.10.04, RTJ 192-3/838).
Também não existe afronta ao decidido por esta Corte na ADIN nº 2.427-MC (Rel. Min. Nelson Jobim,. DJ 08.08.03), porque na norma em exame, como já acima assinalado, não se trata nem de conferir o exercício da função de Delegado de Polícia a substituto comissionado, nem tampouco de conferi-la permanentemente a pessoa sem a correspondente qualificação funcional. Os policiais militares referidos pela norma estadual, exclusivamente Subtenentes e Sargentos, não se tornam - temporária ou definitivamente - Delegados de Policia, e nem exercem funções que lhes sejam próprias: efetivamente se limitam a atender os reclamos imediatos da população naquelas localidades onde, transitoriamente, não seja possível a instalação de adequada estrutura policial civil, mas a partir daí não lhes cabe qualquer função subseqüente inerente à atividade constitucional de Policia Judiciária.(. . .)
Precisamente pelas razões conducentes ao reconhecimento da constitucionalidade do cerne do Decreto estadual fustigado, que reconhecem como passível de submissão às atividades constitucionalmente ordinárias da polícia militar aquelas descritas no diploma, não se pode admitir como simples execução administrativa de norma legal pré-ordenada situação manifestamente discrepante com seu conteúdo.
Ante o exposto, julgo parcialmente procedente o pedido, para declarar a inconstitucionalidade do artigo 7º do Decreto nº 1.557/2003 do Governador do Estado do Paraná.
A SENHORA MINISTRA CARMEN LÚCIA - Senhora Presidente, no caso específico, tenho dúvidas. Peço vênia ao Ministro Gilmar Mendes pela circunstância de que, de toda sorte, estaríamos determinando exercício da função por pessoas que não integram a carreira. Não é isso, Ministro Relator?
O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR) - Na verdade, não é isso o que o Decreto afirma, mas diz o seguinte:
?Art.1º. Nos municípios em que o Departamento de Polícia Civil não contar com servidor de carreira para o desempenho das funções de Delegado de Polícia de carreira, o atendimento nas delegacias de Polícia será realizado por Subtenente ou Sargento da polícia Militar.?
A SENHORA MINISTRA CARMEN LÚCIA ? Então, era o exercício da função sem ocupação de cargo?
O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR) - Sem ocupação de cargo. Essa é a questão.
A SENHORA MINISTRA CARMEN LÚCIA - Teríamos, aqui, na verdade, um desvio de função, embora determinado por uma circunstância específica. Por isso que, nesta parte, Vossa Excelência não aceita a declaração de inconstitucionalidade?
O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR) - É isso. Depois, o artigo 5º diz o seguinte:
?Art. 5º. Os policiais Militares designados na forma deste Decreto elaborarão Termo Circunstanciado, encaminhando os respectivos documentos à Delegacia de Policia da sede da Comarca.?
A SENHORA MINISTRA CARMEN LÚCIA - A questão que me parece complicada é a transferência das funções para pessoas que não integram o cargo e que têm funções muito específicas. Vossa Excelência, então, está, apesar disso, colmatando para não permitir que não haja esvaziamento das funções.
O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR) - Na verdade não sei qual é a situação - se fosse o caso de nós, eventualmente, baixarmos em diligência para sabermos qual a realidade institucional do Estado do Paraná -, mas em alguns outros Estados, eu saberia, até por ciência própria, que não há policiais civis em número razoável para atender a demanda em todos os municípios. O que o Decreto faz aqui é meramente ? como eu disse ? baseado na idéia de um pensamento possibilista e de um pensamento de necessidade, tentar dar regra a uma situação de necessidade. É tão somenteisso. O policial não se torna delegado, não exerce as funções de delegado; ele apenas lavra um termo circunstanciado e manda para o delegado da Comarca.
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO:
Ministro Gilmar Mendes, sabe qual é a minha preocupação que gostaria de manifestar? É que esse tipo de dispositivo acabe se tornando permanente, ainda mais considerando o estado de origem. Na realidade, quando ele determina a ocupação, mesmo que transitória, que não está na lei ? não havendo, na localidade, delegado -, não é nem transitório nem de caráter excepcional, pois não tem delegado. Por que não se faz o concurso? Não se faz o concurso porque a autoridade executiva não quer. Então, a meu sentir, o risco que corremos - pelo menos na minha avaliação -, se deixarmos passar esse tipo de alteração por via legal, é transformar realmente essa situação em permanente, fato impossível do ponto de vista legal.
A SENHORA MINISTRA CARMEN LÚCIA - Ministro Menezes Direito, tenho medo de que o desvio de função, algo inaceitável no sistema administrativo, esteja sendo legitimado.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI - Permito-me acrescentar às ponderações do Ministro Direito que o artigo 1º diz que estes servidores - Subtenentes ou Sargentos da Polícia Militar - irão desempenhar funções de Delegado de Polícia. Vão praticar atos típicos, próprios do Delegado de Polícia. E isso, data vênia, se me afigura claramente inconstitucional.
O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR) - Não diz isso. O atendimento nas delegacias, na verdade, será realizado por Subtenente ou Sargento. O artigo 5º diz mais: ?Os policiais Militares designados na forma deste Decreto elaborarão Termo Circunstanciado, encaminhando os respectivos documentos à Delegacia de Polícia da sede da Comarca.? Portanto, é o delegado da sede da Comarca que supervisiona ? estou falando em tese.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI - Eminente Ministro, desculpe, a menos que eu esteja com o texto errado. Aqui, o artigo 1º diz o seguinte: ?Nos municípios em que o Departamento de Polícia Civil não contar com servidor de carreira para o desempenho das funções de Delegado de Polícia de carreira, o atendimento nas delegacias de Polícia será realizado por Subtenente ou Sargento da polícia Militar.? Parece-me que aí se sugere que os Subtenentes e os Sargentos desempenharão as funções de delegado. (...)
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR) - A questão que se coloca aqui, evidentemente, seria muito fácil assumir a postura de declarar a inconstitucionalidade do Decreto. É extremamente fácil, basta dizer que isso não atende ao disposto no artigo 144. É facílimo. Agora, o que não se pode ignorar ? e eu não sei qual é a situação exata do Paraná ? é que como fica, e tanto que o Decreto foi redigido de forma cuidadosa, quem é o responsável por uma delegacia que não tem delegado?
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO ? Normalmente é o escrivão. Ou essa delegacia está fechada, ou há outros funcionários.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Nada impede que, não existindo uma delegacia policial, haja um posto da Polícia Militar.
A SENHORA MINISTRA CARMEN LÚCIA - Eu, estava dizendo, Senhora Presidente, realmente, pedindo vênia ao Ministro Gilmar Mendes e apesar de reconhecer todas as dificuldades ? posso falar de cátedra - , de conhecer comarcas em municípios nos quais não há delegado, penso que a solução de tirar de outro quadro que tem funções específicas, traçadas na Constituição, gera essa conseqüência, a que o Ministro Menezes Direito acaba de referir, ou seja, acomodam-se as coisas de tal forma que se permite nunca venha a ter mesmo, porque já há alguém que desempenha essas funções, em agravo à Constituição. Razão pela qual eu vou pedir vênia, Senhora Presidente, ao Senhor Ministro Relator, preocupadíssima com o caso, eu que já fui vítima de uma situação exatamente como essa, porque não havia delegado na cidade, mas, realmente, não posso segui-lo neste caso. Dou pela procedência da ação. Na outra parte, não tenho dúvida alguma.
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO: Senhora Presidente, só para fazer uma observação. Veja bem, a disciplina do artigo 144. § 4°, é expressa. dá atribuição de policia judiciária á policia civil. Nós estamos no Estado do Paraná, essa disciplina tem mais de vinte anos, nasce com a Constituição de 1988, e não há razão alguma para que não tenha sido aberto concurso público para o cargo de delegado. Quer dizer, se não há delegado, não se pode indicar o substituto que não tenha a mesma qualidade, porque, nesses casos em que não há, o escrivão de policia responde.
Como disse o Ministro Celso de Mello, pelo menos também na minha compreensão, há conseqüências jurídicas severíssimas pelo preenchimento de um termo de ocorrência por uma pessoa que não tenha nenhuma formação para isso. Quem já militou na advocacia criminal,nas delegacias de policia, sabe muito bem o que ocorre com o termo de ocorrência mal formulado, mal redigido, mal identificado, mal tipificada a circunstância que causou o termo de ocorrência.
A meu sentir, o Decreto, como está posto, viola claramente o § 4° do artigo 144 da Constituição Federal, porque nós estamos autorizando que, por via regulamentar, se institua um substituto para exercer a função de policia judiciária, mesmo que se transfira a responsabilidade final pelo o delegado da Comarca mais pr6xima. Isso, pelo contrário, é uma abertura, a meu ver, de exceção gravíssima na própria disciplina constitucional. Senhora Presidente, voto no sentido da procedência.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI ? Senhora Presidente, também eu voto pela procedência total da ação, embora seja louvável a intenção do Decreto no sentido de resolver, na prática, a carência de delegados no Estado do Paraná.
Parece-me que ele está atribuindo a função de polícia judiciária aos policiais militares de forma absolutamente vedada pelos artigos 144, §§ 4º e 5º da Constituição. Portanto, com a devida vênia do eminente Relator, eu julgo totalmente procedente a ação direta de inconstitucionalidade.
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - Senhora Presidente, eu também vou pedir vênia ao eminente Relator, em primeiro lugar para dizer que esta ação não escapa a um dilema: este Decreto ou trata de funções e competências de polícia judiciária, ou não trata. Se não trata de funções e competência de polícia judiciária, é inútil. Não necessitaria de haver decreto algum, porque o pressuposto é que se tratasse de função e competência específica da polícia militar, e, para isso, não precisa decreto especial para dizê-lo. Se o Decreto se preocupou em disciplinar essa matéria, é porque parte da premissa de que, em se tratando de função própria de polícia judiciária, é preciso que a matéria seja regulamentada.
Ora, este Decreto tem dois discursos: o latente e o patente. O patente é o de que os sargentos não vão fazer nada. só lavrar termo circunstanciado. O latente é de que eles, na verdade ficam investidos de poderes próprios de polícia judiciária e daí decorre uma série de conseqüências, entre as quais abusos que, com base nesse Decreto, podem ser eventualmente praticados por sargentos da Polícia Militar. Tanto assim que o Decreto se preocupa em habilitar os sargentos. Há previsão de curso. É como se fosse um curso breve, reduzindo a Faculdade de Direito a um curso breve. Está aqui:
"Art. 4°. Os Policiais Militares designados na forma deste Decreto serão submetidos a curso que os habilite ao desempenho das atividades que exercerão, a ser promovido pelo Departamento de Polícia Civil." Isto é, a Polícia Civil é que vai ensinar os sargentos desempenhar funções próprias da Polícia Civil.
O pressuposto é esse. Não se trata, pura e simplesmente de reconhecer a prática de atos próprios da competência da Polícia Militar.
Em segundo lugar, o disposto no artigo 5º não pode ser compreendido como mera formalização do atendimento de ocorrências da responsabilidade não apenas de sargento, mas de qualquer praça que atenda a ocorrências. É fazer por escrito um relato do que aconteceu e remeter para o delegado de polícia. Isso, sim, é o que eles podem e devem fazer. Agora, se há toda uma preocupação em regulamentar esse termo circunstanciado é porque, ocupando o lugar físico, pois o artigo 1º se refere ao lugar físico, e também o lugar jurídico de delegado de polícia, isto é, do titular constitucional da competência de polícia judiciária, é que eles irão proceder a esse juízo jurídico grave de um termo circunstanciado. Por isso, o artigo 1º dispõe que serão atendidos na delegacia. Poderia ter previsto que, onde não houvesse delegacia, as ocorrências policiais poderiam ser atendidas no posto da Policia Militar. Não, mas estatui que sejam atendidos na delegacia. Não é por uma mera questão de lugar físico, mas porque a delegacia é o lugar simbólico do exercício da competência de polícia judiciária.
Na verdade, eles estão sendo, pelo Decreto, travestidos em agentes que têm competência para o exercício de polícia judiciária.
À luz da Constituição - o eminente Relator também reconhece não há dúvida nenhuma, é simples reconhecer-lhe a Incompatibilidade com o alcance do Decreto entendido como discurso latente. De modo que, também, peço vênia ao eminente Relator, e julgo totalmente procedente a ação.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Presidente, tivemos um bloqueio triplo, considerado o voto do relator e a bancada que está à esquerda de Vossa Excelência, isso quando Vossa Excelência indagou se havia divergência. Não resta a menor dúvida de que tivemos uma disciplina mediante decreto a versar sobre o exercício das atribuições de delegado de polícia, que a Constituição quer na chefia das polícias, na direção das Polícias Civis, como implementada por delegado de polícia de carreira, considerada integrante da Polícia Militar. E diria que, na prática, a convivência já não é muito harmoniosa. O que se dirá caso admitida a mesclagem prevista nesse decreto?
Tem-se, no artigo 144 da Constituição Federal, balizas rígidas e existentes há bastante tempo sobre as atribuições das polícias Civis e Militares. No caso da Policia Militar, está previsto que cabe a ela a policia ostensiva e a preservação da ordem, mas não a direção de uma delegacia de policia.
Cogita-se aqui - por isso não podemos nem imaginar a inconstitucionalidade progressiva, com a passagem do tempo - de uma das principais unidades da Federação, em termos de avanço administrativo, considerada a estruturação.
Peço vênia ao relator para me filiar à divergência, julgando totalmente procedente o pedido, mesmo porque o decreto é comando pelo artigo 1º, no qual anunciada a disciplina da atividade a ser desenvolvida, fazendo o policial militar as vezes do policial civil, de delegado de carreira.
CONFIRMAÇAO DE VOTO
O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR) ? Senhora Presidente, só gostaria de destacar, tal como já o fiz quando do meu voto, que, mais uma vez, diferentemente do que foi considerado em algumas das manifestações, que o decreto não conferiu as funções de delegado de polícia as esses agentes policiais. Isso é evidente. Nas próprias razões do Estado do Paraná - são velhas, já estão muito provavelmente desatualizadas, diz que diante de concurso público realizado sem que houvesse candidatos suficientes para ocupar as vagas lançou-se mão desse estratagema, necessidade de que houvesse essa disciplina, e o próprio Conselho da Polícia Civil, Conselho Superior, recomendou a abertura de novo concurso público.
Então, a rigor, não há essa subtração da atividade de delegado de policia ou a usurpação, a meu ver. Por outro lado, a própria expressão ?termo circunstanciado? remete, como agora destacado pelo Ministro Celso de Mello, à Lei nº 9.099, que, na verdade, não é função primacial da autoridade policial civil. A doutrina registra que essa é uma função que pode ser exercida por qualquer autoridade policial.
Reitero a posição por mim iniciada. Penso que, ortodoxamente, o tema não poderia ser tratado. O ideal é que haja delegados em todos os municípios. Todavia, o que temos, aqui, é uma regra de necessidade. Tão-somente isso e foi essa a minha leitura em relação a esse tema. Imagino que Brasil afora, nos cinco mil municípios, haja uma lacuna enorme nas delegacias, talvez nem escrivão nem delegados. Fico a imaginar quem poderá eventualmente exercer essas funções.
Recentemente julgamos, na Turma, um caso passado no Pará, na capital Belém, em que se falava de um ?funcionário? especial da delegacia, porque se dizia ser alguém que prestava serviço à polícia sem ter função nenhuma; chamavam de alma. É um agente policial especial porque não tem funções. Isso na capital do Estado do Pará.
Portanto, estamos, realmente, em searas bastante peculiares. Por isso entendo que, baseado nesse pensamento possibilista e de realidade, o decreto, tendo em vista esse caráter excepcional e temporário, é constitucional. Reitero meu voto.
A SENHORA MINISTRA ELLEN GRACIE (Presidente) - Peço vênia ao eminente Relator para seguir na linha da maioria e julgar procedente a ação direita de inconstitucionalidade. Creio que as duas polícias, civil e militar, têm atribuições, funções muito específicas e próprias, perfeitamente delimitadas e que não se podem confundir?. Ressalvo que destaquei partes em todos os votos.
Trata-se de julgamentos recentes, o último ocorrido em setembro de 2007, com seis votos, inclusive o da Ministra presidente, que fez questão de votar, contra um, portanto a maioria do pleno da Corte Suprema do País, com sua atual composição, que reprovou por completo tais delegações e julgou inconstitucional o ato que regrava o exercício das atribuições de polícia judiciária por Policiais Militares.
Todos os votos trazem argumentos fortíssimos a demonstrarem não só a inconstitucionalidade e as impropriedades advindas do exercício das atribuições constitucionais de uma instituição por outra não designada pela ordem constitucional.
Malgrado todo o exposto, acatando a ordem judicial emanada pela Excelentíssima Autoridade Judicial competente, bem como orientação da Corregedoria de Polícia em consulta realizada na data de hoje, determino a lavratura do flagrante face ao material apreendido (produto de roubo na ocorrência 100462/2010/5145 e da grande quantidade de documentos falsificados) em posse do conduzido, Sr. E. A. da S. M. Nestes termos, incurso nos crimes do artigo 180 e 297, caput, do Código Penal. Formalize o ato tomando todas as providênciais legais e constitucionais asseguradas.
Em que pese o entendimento majoritário de que as provas produzidas no cumprimento desta diligência seja ilícita nos termos do artigo 157 do CPP e lembrando que fato análogo gerou inclusive condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, ainda assim face a ordem emanada deste douto juízo determino a lavratura do flagrante com estas considerações.
Para fins de conhecimento encaminho o parecer do ilustre jurista HÉLIO TORNAGHI em anexo .
Alvorada, 07 de Dezembro de 2010, Thiago Almeida Lacerda. Delegado de Polícia
PARECER HELIO TORNAGHI
?A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas jurisdições e terá por fim a apuração das infrações penais e de sua autoria?. Autoridade. O conceito de autoridade está diretamente ligado ao de poder de Estado. Os juristas alemães, que mais profundamente do que quaisquer outros estudaram o assunto, consideram autoridade (Behörde) todo aquele que, com fundamento em lei (auf gesetzlicher Grundlage), é parte integrante da estrutura do Estado (in das Gefüge der Verfassung des Staates als Bestandteil eingegliederte) e órgão do poder público (Organ der Staatsgewalt), instituído especialmente para alcançar os fins do Estado (zur Herbeiführung der Zwecke des Staates), agindo por iniciativa própria, mercê do ordens e normas expedidas segundo sua discrição (nachPflichtgemässen Ermessen).
Daí se vê que a Autoridade:
a) é órgão do estado;
b) exerce o poder público;
c) age motu próprio;
d) guia-se por sua prudência, dentro dos limites da Lei;:
e) pode ordenar e traçar normas;
f) em sua atividade não visa apenas aos meios, mas fins do Estado.
São Ainda os publicistas alemães que proclamam: a autoridade é o titular e portador (Behörde ist der Träger) dos direitos e deveres do Estado (staatlicher Reche und Pflichten). Não tem personalidade (Sie besitzt Keine Rechtspersönlichkeit) mas faz parte da pessoa jurídica Estado.
Em outras palavras: o Estado é o titular do poder público. Mas como o exerce? Evidentemente por meio de pessoas físicas que a lei investe daquele poder. Elas são o Estado. O pensamento delas é o dele: a vontade delas é a dele. Tudo é deixado à sua discrição. Não ao seu arbítrio, Que arbítrio é capricho e não conhece lei.
Seria ilógico que o Estado traçasse os limites do conveniente ao bem público e a ele próprio, por meio de seus órgãos, violasse esses lindes. Mas dentro da área de legalidade delimitada pelo Estado, cabe aos órgãos encarregados de lhe atingir os fins, a escolha dos meios mais adequados. Têm eles autoridade para escolher os caminhos.
Por outro lado, não se trata do exercício de um poder particular, mas do próprio poder público. Daí a posição proeminente da autoridade em relação aos particulares. O status subjectionis desses em relação ao Estado coloca-os como súditos dos que exercem o poder público. A autoridade, dentro de sua esfera de atribuições, não pede, manda. A desobediência á ordem as autoridade pode até configurar infração penal.
Autoridade policial. Estabelecido o conceito de autoridade, vejamos o que se deve entender por autoridade policial.
É de todos os tempos a preocupação das sociedades organizadas em zelar o bem comum. Deve o Estado velar por sua própria segurança e pela de cada um de seus súditos, proteger suas pessoas e resguardar as coisas contra investidas que possam lesioná-las, além de prover aos legítimos anseios de paz e de prosperidade.Esse cuidado especial que incumbe à Polis (palavra com que os gregos exprimiam o que hoje chamamos Estado) dá lugar a uma atividade conhecida como de polícia.Os órgãos que a exercem foram em toda a Antigüidade, considerados altas magistraturas.
O edil, o censor, o cônsul eram, sobretudo, os policiadores da cidade. A polícia era - e é - um dos mais altos órgãos do poder público e por meio de uma atividade importantíssima ela assegura intransigentemente a ordem sem violar mas, ao contrário, protegendo os direitos individuais. A difícil tarefa de estabelecer o equilíbrio entre as exigências da segurança social e as legítimas aspirações individuais é a que ela tem de cumprir a cada instante, sem desfalecimento mas também sem prepotência. Não é fácil encontrar a fórmula conciliatória; esse, porém, é o desafio permanente aos que exercem a autoridade policial.
É ela uma faceta do poder do estado e, exatamente, do poder de intervier a cada momento por meio de atos coercitivos, ou seja, de ordens, normas ou providência que restringem o gozo dos direitos individuais. Esse poder não é somente legítimo; é essencial à natureza do Estado, inclusive do Estado de direito, que encontra sua atividade limitada por lei, mas não está impedido de cumprir sua missão. O exercício dele pode ser contrastado, em cada caso, pelos recursos hierárquicos ou pelo acesso ao Judiciário, mas não poderia ser obstruído sem que se negasse o próprio Estado.
A necessidade de agir com rapidez e a infinita variedade de situações que o legislador não pode prever e, muito menos, disciplinar mercê de normas gerais e abstratas, fazem com que esse poder tenha de ser exercitado discricionariamente, ou seja, segundo a prudência daqueles que o detêm e dentro dos marcos legais.
Esse poder de polícia é próprio da administração em geral, mas particularmente necessário ás autoridades policiais, que exercem de duas maneiras:
- pela prevenção;
- pela repressão.
A prevenção se faz mercê de provimentos, ordens e providências tendentes a proteger as coisas (polícia administrativa) e as pessoas (polícia de segurança). É evidente que a defesa das coisas reverte em favor das pessoas e a destas tem como corolário a daquelas. Assim, para ilustrar a afirmação, uma polícia florestal, embora destinada a proteger bosque, parques, matas jardins, também acautela quem neles se acha . E, por outro lado, o socorro dado pela polícia de segurança a uma pessoa redunda em tutela para as coisas que tem consigo. Mas a finalidade precípua das polícias administrativas como, por exemplo, a polícia do cais do porto, a polícia de um edifício público, a de um barco do Estado, é cuidar do cais, do edifício, do banco. E o objetivo da polícia de segurança, que é a polícia por antonomásia, polícia por excelência, polícia em sentido estrito, é a proteção de pessoas.
A repressão está entregue, no Estado moderno, ao Poder Judiciário. Mas a polícia colabora nessa tarefa e pratica atos tendentes a promovê?la (polícia judiciária). Entre eles os mais importantes são os que, em conjunto, constituem o inquérito policial. Destina?se esse à apuração das infrações penais e de sua autoria.
E por ser a repressão ato de poder do Estado, somente aos que detêm esse poder é dado exercer funções de polícia judiciária.
E por ser a repressão ato de poder do Estado somente aos que detêm esse Estado e os que servem de instrumento para os primeiros.
Nem todo policial é autoridade, mas somente os que, investidos do poder público, têm por tarefa perseguir os fins do Estado. Não é, por exemplo autoridade policial um perito, ainda quando funcionários de polícia, ou um oficial da Força Pública, uma vez que as corporações a que pertencem são órgãos-meios postos à disposição d autoridade. Missão digníssima que, longe de amesquinhar, exalta os que a cumprem com finalidade e sem abuso, com zelo e sem usurpação do poder. Podem esses servidores, eventualmente atuar como agentes da autoridade, mas não são eles próprios autoridades. Para ficar dentro do exemplo citado: um perito é um instrumento ao serviço da polícia judiciária (contingentemente, da polícia de segurança); a Força Pública é uma arma posta a serviço da polícia de segurança (esporadicamente, da polícia judiciária).
Costumeiramente sou avesso a citar autores quando o que se pede é o meu parecer. Mas não posso deixar de recordar aqui a distinção feita pelo mestre do Direito Público em França, Maurice Hauriou, entre a força pública e o poder público.
Embora velha, a lição merece ser recordada. Em resumo: a força é uma energia física, meio de execução que se desgasta com o uso. O poder é a capacidade de dispor da força e se exercitar sem perda de substância. É a força em repouso, que poderia agir como força e não age. O homem forte não precisa usar os punhos para se impor; ele o consegue mercê do poder de que dispõe.
Ele ordena, determina, decide. Hércules, em repouso, comanda.
Essa distinção está ilustrada nos Estados modernos pela separação constitucional entre força pública e poder de decisão. A força pública, civil ou militar está cuidadosamente separada do poder de decidir; ela é instrumento de execução (Précis de Droit Administratif, 9.ª Ed., Paris, 1919, págs 24 e 25).
O órgão que exerce o poder público pode enfeixar também a força. Mas um órgão criado para ser apenas força não pode licitamente assenhorear?se do poder público.
Em geral a força está entregue a um e o poder a outro. É o caso típico da polícia de segurança: a polícia civil detém o poder, a autoridade, enquanto a polícia militar (Força Pública) dêem a força.
Mas, para definir cumpridamente a autoridade policial de que fala o art. 4º, cumpre dar um passo adiante e lembrar que se trata de autoridade de polícia judiciária. Qualquer outro órgão, ainda que exerça autoridade em distinto terreno é estranho ao art. 4º do Código de processo Penal. Em meu anteprojeto, toda essa matéria está subordinada à epígrafe: Da Polícia Judiciária (Liv. II, tít. I, arts. 6º a 21). O código vigente, menos preciso, declara que "a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais..." (sem grifo no original). Mas o próprio emprego da palavra autoridade exclui qualquer dúvida, pois seria rematado absurdo que um particular ou um órgão-meio do Estado se arvorasse em autoridade. E a referência à polícia judiciária elimina a intromissão de qualquer autoridade, agente da autoridade ou mero funcionário pertencente a outros ramos da administração pública, ainda que policiais, seria abusivo que um mata?mosquitos, por pertencer à polícia sanitária, resolvesse abrir inquéritos, arbitrar fianças, fazer apreensões etc. Ou que um oficial da Força Pública resolvesse tomar a iniciativa de investigar crimes.
Aliás o sentido da lei surge cristalino quando se leva em conta o elemento histórico. Autoridade policiais sempre foram entre nós os chefes de polícia, seus delegados e, por vezes, os comissários. Quem pensaria, por exemplo, em transformar um oficial da Força Pública, em autoridade policial? Fugiria, por inteiro, ao papel das polícias militares.
Por outro lado, o art. 4º não comporta outra interpretação literal. Ao dizer que "a polícia judiciária será exercida pelas autoridade policiais", é evidente que ele se refere aos órgãos da polícia judiciária.Seria tautológico repetir: a polícia judiciária será exercida pelas autoridades da polícia judiciária.
Mas é curial que só a essas ele refere. Ao falar em autoridade policiais esse dispositivo subentendeu: autoridades de polícia judiciária. Teve, portanto, em mira:
1.º) as autoridades. Quem não é autoridade, quem não age motu próprio, quem é órgão instrumental, não está incluído;
2.º) de polícia judiciária e não qualquer outras. Tanto isso é verdade que no parágrafo está dito que a lei poderá abrir exceções, isto é dar competência a autoridades administrativas para fazer inquérito policiais.
Portanto, só mercê de lei especial pode instaurar inquérito para apuração de infrações penais e de sua autoria, quem é autoridade mas não de polícia judiciária.
As premissas assentadas permitem concluir que são autoridades policiais de que fala a lei de processo , os que:
1.º) exercem o poder de público para consecução dos fins do Estado;
2.º) em matéria de polícia judiciária.
Não são autoridades policiais, no sentido do art.4º:
1.º) os que não perseguem os fins do Estado, mas são apenas órgãos?meios,como por exemplo, os médicos do serviço público, os procuradores de autarquias, os oficiais de Polícia Militar (ou força Pública);
2.º) os que mesmo pertencendo à Polícia em seu sentido amplo, não são polícia judiciária, mas polícia administrativa (ex., Polícia de Parques, corpos de bombeiro) ou polícia de segurança (ex., Força Pública).
Autoridade e agente de autoridade. Estabelecido o conceito de autoridade,vejamos agora que se deve entender por agente da autoridade.Existe entre os servidores do Estado, que diz respeito ao poder público, uma escala que pode ser assim reduzida à expressão mais simples.
- servidores que exercem o nome próprio o poder de Estado. Tomam decisões, impõem regras, dão ordens, restringem bens jurídicos e direitos individuais, tudo dentro dos limites traçados por lei. São as autoridades;
- servidores que não têm autoridade para praticar esses atos por iniciativa própria, mas que agem (agentes) a mando da autoridade. São os agentes da autoridade.
- servidores que se restringem á prática de atos administrativos e não exercem o poder público; não praticam atos de autoridade, nem por iniciativa própria, nem como meros executores que agem a mando da autoridade. Não são autoridades nem agentes da autoridade.
Exemplos dos primeiros: juízes, delegados de polícia. Exemplos dos segundos: oficiais de justiça, membros da força Pública.
Exemplos dos últimos: oficiais judiciários, oficiais administrativos.
Esses conceitos são por demais claros e precisos - claros em seu conteúdo e precisos em seus contornos?para que a lei necessitasse contê-los. Quando porém agentes da autoridade, quase sempre de boa fé e com o louvável intuito de servir, se arvoram em autoridades, convém que a própria lei reponha as coisas em seu lugar. Creio que seria vantajoso aproveitar o ensejo da modificação do Código de Processo Penal para fazê-los.
Quando elaborei o Anteprojeto, o problema inexistia, pois não havia notícia de que agentes de autoridade se arrogassem autoridade própria. É lamentável engano supor que a tarefa do agente de autoridade o subalterniza e mais deplorável ainda entender que o detentor da força deve ser o titular do poder.
Sobretudo quando esses enganos são causados por melindres pessoais ou de classe que se supõem humilhadas pelo papel de agentes que a lei lhes reserva. Assim como a força militar está ao serviço do poder civil, sem que isso lhe arranhe a dignidade ou o pundonor, assim também a Força Pública é agente da autoridade policial sem que isso importe qualquer diminuição ao eminente valor que ela representa. Ferida ela fica é quando esquece sua destinação legal para apropriar-se de um poder que não é seu.?
Por Thiago Almeida Lacerda
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Vou ainda editar este comentário, após ler o texto mais profundamente. Mas posso antecipar que hoje vivemos um cenário de insegurança jurídica, de desordens e de sucateamento na polícias, cujos efeitos refletem comportamentos das mais diversas espécies e tipos, violando as leis, os limites de cada instituição e as atribuições específicas dos agentes da segurança pública, numa ânsia de ocupar espaços uns dos outros.
A PM entra na seara da polícia investigativa, investigando e cumprindo mandatos, e a polícia civil se farda, policia as ruas com suas volantes caracterizadas e realiza operações tipo polícia ostensiva. A PM se ausenta das ruas e a polícia civil das investigações, atribuições que são precípuas destas duas forças.
A Policia exerce função essencial à justiça. Não é instrumento político-partidário. A segregação pela justiça e a ingerência partidária em questões técnicas e de carreira dificultam os esforços dos gestores e operadores de polícia, criam animosidade, desviam efetivos e reduzem a eficácia e a confiança do cidadão nas leis, na polícia e no sistema de justiça criminal que, no Estado Democrático de Direito, garante a ordem pública e os direitos da população à justiça e segurança pública.
ALERTA: A criminalidade e a violência crescem de forma assustadora no Brasil. Os policiais estão prendendo mais e aprendendo muitas armas de guerra e toneladas de drogas. A morte e a perda de acessibilidade são riscos presentes numa rotina estressante de retrabalho e sem continuidade na justiça. Entretanto, os governantes não reconhecem o esforço e o sacrifício, pagam mal, discriminam, enfraquecem e segmentam o ciclo policial. Os policiais sofrem com descaso, políticas imediatistas, ingerência partidária, formação insuficiente, treinamento precário, falta de previsão orçamentária, corrupção, ingerência política, aliciamento, "bicos" inseguros, conflitos, autoridade fraca, sistema criminal inoperante, insegurança jurídica, desvios de função, disparidades salariais, más condições de trabalho, leis benevolentes, falência prisional, morosidade dos processos, leniência do judiciário e impunidade que inutilizam o esforço policial e ameaçam a paz social.
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
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