O símbolo sexual e a guerra civil - Eugênio Bucci, jornalista, professor da ECA-USP E DA ESPM - O Estado de S.Paulo, 02/12/2010
A arte inspira a vida - Não faz um mês, o ator Wagner Moura estrelou a capa da revista Veja, em trajes de capitão Nascimento, seu personagem em Tropa de Elite. A chamada, em letras alaranjadas, falava bem dele: O primeiro super-herói brasileiro.
Falava muitíssimo bem, e com razão. O primeiro Tropa de Elite foi um sucesso histórico. O segundo, agora, caminha para alcançar 10,7 milhões de espectadores e bater o recorde de público do cinema brasileiro - recorde que pertenceu, por décadas, a Dona Flor e seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, lançado em 1976. O capitão Nascimento é tão adorado quanto sádico. No filme de estreia, torturava seus prisioneiros, enfiando-lhes a cabeça em sacos plásticos até fazê-los sangrar pelo nariz. No longa-metragem deste ano, o capitão foi promovido a coronel e, munido da nova patente, espanca políticos corruptos até nocauteá-los, ou quase. Fora isso, Nascimento é um herói que inspira derretimentos femininos: bonitão, voz grave, coração machucado (a mulher trocou-o por um ativista dos direitos humanos), o homem é o símbolo sexual da temporada.
A notícia imita a arte - Não faz uma semana, um policial de verdade ganhou a capa da mesma revista. É um militar do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o Bope, como do Bope é o Nascimento da ficção. Há um detalhe: o combatente real, na capa, não vem identificado por seu nome próprio. Com o rosto besuntado pela tinha negra da camuflagem, ele é descrito, na legenda, apenas como um "policial do Bope". É um genérico. Traja um colete à prova de balas sobre farda escura. Suas luvas pretas, lustrosas, de couro, talvez sintético, deixam de fora as pontas dos dedos, que seguram uma metralhadora bojuda, cascuda como um besouro, um botijão de projéteis mortais. Outra vez, a manchete na capa é consagradora: O dia em que o Brasil começou a vencer o crime.
A figura cesarista do militar, fotografada de baixo para cima, herda a aura que, poucas edições antes, fez luzir o semblante do fictício Nascimento. Dele herda certos atributos. O policial sem nome não devia estar pensando nisso quando a foto foi clicada, mas, com seu olhar metálico e a fisionomia retesada, ele também está ali como símbolo sexual da temporada. Mas ele é real como um rolo de arame farpado.
A crítica não dá conta de entender - Sem o êxito arrebatador desses filmes hiper-realistas sobre o narcotráfico - de Cidade de Deus a Tropa de Elite -, a nossa sociedade não teria recursos narrativos para relatar, compreender e, em boa medida, estimular a guerra que tomou conta da Cidade Maravilhosa. O imaginário funciona assim mesmo: primeiro produz os signos, que nascem de esforços estéticos, ficcionais ou religiosos, a partir de demandas que brotam das perguntas, dos vazios e das aflições da vida material das sociedades; só depois lança mão desses signos para, num movimento de retorno, descrever e, assim, ordenar a realidade bruta, que desafia os limites da representação.
Primeiro, o cinema nacional inventou o seu grande ídolo fardado (não tínhamos um assim desde O Vigilante Rodoviário da TV), depois, os policiais de verdade tiveram seus dias de glória. Há muito tempo os militares não eram tão festejados como o são agora.
Na Cidade Maravilhosa, a guerra civil desenrola-se como num roteiro de filme de ação, e isso talvez não tenha sido devidamente registrado. Durante esses tiroteios todos, falou-se muito de reality show, mas quase nada se disse sobre a narrativa e sobre o roteiro que dá encadeamento a todas as ações. O roteiro não foi urdido pelos jornalistas, nada disso. Ele floresce do repertório social, de sentimentos, desejos e aspirações disseminadas na linguagem e na imaginação correntes. Não foi a tal da "mídia" que inventou, de repente, de bater palmas para as forças militares - é a sociedade, em seus diversos segmentos, que legitima os aplausos. As pessoas aplaudem as forças de ocupação porque não aguentam mais viver sob a tirania dos bandidos, sem dúvida alguma. Mas elas também aplaudem porque, agora, dispõem da narrativa dentro da qual o homem veste bem o papel do mocinho. Foi assim que Tropa de Elite mudou o lugar da polícia no imaginário carioca - e brasileiro.
A realidade dança ao ritmo dos mitos compartilhados pelos viventes. Vem daí a sensação de que a vida imita a arte. Vem daí, também, a sensação que a gente tem de vez em quando de que o jornalismo fala dos filmes como se os filmes fossem fatos - e dos fatos como se eles fossem cenas de um grande filme.
Uma foto que ganhou enorme visibilidade nestes dias vem ilustrar o mesmo fenômeno. No alto de um morro carioca, policiais circundam duas bandeiras que acabam de ser hasteadas. Uma é do Brasil. A outra, do Rio de Janeiro. O fato fotografado é novo, mas a fotografia é antiga, ou melhor, é a reedição de uma imagem clássica, absolutamente mítica, registrada por Joe Rosenthal, em fevereiro de 1945, em Iwo Jima: soldados americanos erguem a bandeira americana após a tomada da ilha.
Aquele flagrante, depois ficou provado, foi encenado. Mesmo assim, virou símbolo da conquista do Pacífico pelos Aliados. Agora, como os Aliados no Pacífico, a força bruta do Bope invade territórios para ocupá-los ou libertá-los, dependendo do discurso da vez. Uma guerra total, agora bem pertinho de você. As balas do bem hão de dizimar o mal e abrir o terreno para o nosso estandarte.
O Rio de Janeiro vive sua saga mítica, sua epopeia de reabilitação. O Rio, ponta de lança do imaginário nacional, levanta-se contra os bandidos. Aqui, nessa carga simbólica, mora a potência da violência que varre o horizonte incerto de rochas dilatadas, que são, como avisou o sambista, uma concentração de tempo. E de mistérios. O desfecho das sagas reais não costuma ser tão feliz como no cinema.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Se a desordem pode ser restabelecida na ponta de uma pena, eu gostaria de ter esta pena. O herói, o justiceiro, o bandido e o rebelde só aparecem quando falha a justiça que é provida pelo Estado. Uma nação que não aplica suas leis e não promove justiça, é como se não tivesse leis e nem justiça.
E os heróis que precisamos estão nos juizes e tribunais regionais, no MP, nas forças policiais, nas forças armadas, nas guardas prisionais, na saúde, nas ONGs e nos moradores que estão colaborando para que o todos possam vencer esta guerra contra o tráfico. A propósito, não vi o Congresso nesta união de esforços. Onde estarão nossos senadores e deputados. Que eu saiba os militares federais estão desamparados da lei nesta guerra.
Sejam bem-vindos os nossos heróis.
A Policia exerce função essencial à justiça. Não é instrumento político-partidário. A segregação pela justiça e a ingerência partidária em questões técnicas e de carreira dificultam os esforços dos gestores e operadores de polícia, criam animosidade, desviam efetivos e reduzem a eficácia e a confiança do cidadão nas leis, na polícia e no sistema de justiça criminal que, no Estado Democrático de Direito, garante a ordem pública e os direitos da população à justiça e segurança pública.
ALERTA: A criminalidade e a violência crescem de forma assustadora no Brasil. Os policiais estão prendendo mais e aprendendo muitas armas de guerra e toneladas de drogas. A morte e a perda de acessibilidade são riscos presentes numa rotina estressante de retrabalho e sem continuidade na justiça. Entretanto, os governantes não reconhecem o esforço e o sacrifício, pagam mal, discriminam, enfraquecem e segmentam o ciclo policial. Os policiais sofrem com descaso, políticas imediatistas, ingerência partidária, formação insuficiente, treinamento precário, falta de previsão orçamentária, corrupção, ingerência política, aliciamento, "bicos" inseguros, conflitos, autoridade fraca, sistema criminal inoperante, insegurança jurídica, desvios de função, disparidades salariais, más condições de trabalho, leis benevolentes, falência prisional, morosidade dos processos, leniência do judiciário e impunidade que inutilizam o esforço policial e ameaçam a paz social.
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
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