ALERTA: A criminalidade e a violência crescem de forma assustadora no Brasil. Os policiais estão prendendo mais e aprendendo muitas armas de guerra e toneladas de drogas. A morte e a perda de acessibilidade são riscos presentes numa rotina estressante de retrabalho e sem continuidade na justiça. Entretanto, os governantes não reconhecem o esforço e o sacrifício, pagam mal, discriminam, enfraquecem e segmentam o ciclo policial. Os policiais sofrem com descaso, políticas imediatistas, ingerência partidária, formação insuficiente, treinamento precário, falta de previsão orçamentária, corrupção, ingerência política, aliciamento, "bicos" inseguros, conflitos, autoridade fraca, sistema criminal inoperante, insegurança jurídica, desvios de função, disparidades salariais, más condições de trabalho, leis benevolentes, falência prisional, morosidade dos processos, leniência do judiciário e impunidade que inutilizam o esforço policial e ameaçam a paz social.

domingo, 24 de agosto de 2014

OS EUA TÊM PESADELO RACIAL


ZERO HORA 24 de agosto de 2014 | N° 17901


MUNDO BARRIL DE PÓLVORA RACIAL

A MORTE DE Michael Brown, 18 anos, por um policial da cidade de Ferguson, mostrou que, no ano do cinquentenário da Lei dos Direitos Civis, negros americanos ainda são mais expostos à violência policial e à prisão, apesar de um deles cumprir o segundo mandato presidencial consecutivo



Há 51 anos, num agosto abafado, um homem proferiu um discurso pungente nas escadarias do Lincoln Memorial, em Washington, capital dos Estados Unidos. “Eu tenho um sonho de que meus quatro filhos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter”, disse o reverendo Martin Luther King, Jr., que mereceria, por sua defesa dos direitos dos negros, um Prêmio Nobel da Paz e uma bala mortal num hotel de Memphis, Tennessee.

Dos três filhos vivos de King (Yolanda, a primogênita, morreu em 2007), o mais velho tem hoje 56 anos, e a caçula, 51. Sob alguns aspectos, os Estados Unidos não são os mesmos de 1963. Em outros, o dia imaginado pelo reverendo permanece distante. Quando Barack Obama prestou juramento como 44º presidente, em 2009, muitos pensaram que King fora profético. Quando um policial de Ferguson, Missouri, matou com seis tiros um jovem negro de 18 anos, no dia 9, o discurso de Washington parece ainda estar sendo pronunciado.

– Obama mencionou diretamente a questão racial em discurso oficial pela primeira vez ao final do seu primeiro mandato, após o assassinato do jovem negro Trayvon Martin, em 2012. Na ocasião, declarou que o garoto de 16 anos morto de forma estúpida e gratuita poderia ter sido ele – diz Gabriel Pessin Adam, professor de Relações Internacionais da Unisinos e da ESPM.

O drama catalisado em Ferguson pode ser entendido à luz do mais importante documento escrito nos Estados Unidos. A Quarta Emenda afirma que “o direito do povo à segurança em suas pessoas, casas, documentos e efeitos, contra buscas e restrições imotivadas, não deve ser violado”. Estatísticas indicam que 80% das pessoas abordadas pela polícia de Nova York são negras ou latinas. Em 2012, homens negros estavam seis vezes mais sujeitos a ser presos do que brancos – entre latinos, a proporção era de 2,5 vezes mais do que brancos, segundo o Departamento de Justiça.

DOS 53 POLICIAIS, TRÊS SÃO NEGROS

Linhas raciais e sociais muitas vezes se confundem. Ferguson sofreu uma verdadeira revolução demográfica nos últimos 20 anos. Até os anos 1990, Ferguson era um subúrbio predominantemente branco. Hoje, de seus 21 mil habitantes, 67% são negros, e 29%, brancos. A cidade alçada ao mapa da violência racial fica na periferia de St. Louis, cuja população caiu de 850 mil habitantes em 1950 para os atuais 318 mil. Em St. Louis, a metade negra da população vive na zona norte, e brancos e imigrantes europeus, latinos e asiáticos, no sul.

À distribuição desigual de direitos e espaço, segue-se o desequilíbrio na representação. Embora sejam a maioria, os negros não representam uma força política ativa em âmbito local. O prefeito James Knowles, republicano e branco, foi eleito num pleito com quórum de apenas 12% dos eleitores cadastrados. Dos 53 homens do Departamento de Polícia municipal, somente três são negros.

Na sexta-feira, ex-policiais aposentados juntaram-se aos protestos para exigir a verdade sobre as circunstâncias da morte do jovem Michael Brown.

– Há milhares de Ferguson nos EUA. Todo o sistema está corrompido. Os negros sabem disso porque são suas vítimas durante toda a vida – disse Ray Lewis, que patrulhou as ruas de Filadélfia durante 24 anos.


 “Obama é decepcionante”

GABRIEL PESSIN ADAM. Professor de relações internacionais da Unisinos e da ESPM


Doutor em ciência política pela UFRGS, Gabriel Pessin Adam é especialista em América do Norte. A seguir, leia entrevista:

Qual é o legado de Obama em relação à questão racial?

Obama é decepcionante. A esperança de construção de uma sociedade menos desigual em vários sentidos, entre os quais o racial, não se cumpriu até o momento. Isso não é de todo culpa do presidente, mas é inegável que ele carrega uma parcela considerável de descaso quanto a temas sociais cruciais. O legado é muito pequeno, por certo bem menor do que se esperava de um candidato associado a Martin Luther King, Jr., durante a campanha.

Muitos perguntam por que polícias locais necessitam de blindados e outros equipamentos usados em zonas de guerra. Essa preocupação é válida?

Ainda que o processo de militarização da polícia tenha se iniciado com a criação da Swat, em 1965, o impulso recente foi a aprovação das leis patrióticas propostas pelo governo George W. Bush na esteira dos atentados de 11 de setembro de 2001. Desde então, a escalada militar da polícia foi visível, como na repressão ao movimento Occupy Wall Street. Em Ferguson, Missouri, já foi documentado o uso de veículos, granadas de efeito moral, armamentos e uniformes típicos da elite militar. Parte desse material foi utilizada no Afeganistão.

Ferguson expôs a situação das metrópoles do Meio-Oeste, assoladas por desindustrialização, pobreza e ressentimento. Não é muito frequente ver isso na televisão. Por quê?

Nos últimos 40 anos, os EUA têm observado inédita acumulação de poder econômico por uma pequena elite que cada vez mais detém o poder político. Os índices de desigualdade social no país são preocupantes, e quando considerados derrubam os EUA do quinto lugar no ranking de IDH para o 28º. O Meio-Oeste é diretamente atingido pelo processo de desindustrialização. O fato de isso não ser visto em programas de grande audiência tem a ver com certa aversão da mídia estadunidense por assuntos como desigualdades sociais e diferenças de classe.

Outros segmentos da sociedade devem se preocupar?

O governo Obama tem sido mais duro com os imigrantes do que o governo Bush. O racismo existe em muitos países europeus, e no Brasil. E, infelizmente, nunca morreu nos EUA. Projeções revelam que, em 2060, negros e hispânicos (estes divididos entre negros e brancos) representarão 45% da população do país. Os EUA terão de repensar como encaram sua sociedade, sob pena de que os distúrbios sociais com base na discriminação sejam mais comuns do que hoje.



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