REVISTA VEJA 31/03/2014 - 10:06
Segurança. Criticadas por seu grau de violência e pela baixa eficácia, instituições formam policiais com vícios da ditadura militar. Governos insistem em soluções pontuais que sucumbem às antigas práticas de corrupção e corporativismo
João Marcello Erthal e Daniel Haidar
Policiais durante treinamento da Polícia Militar para conter protestos, no Rio (Yasuyoshi Chiba/AFP)
Quem precisa de polícia? A pergunta carregada de indignação estava entre os muitos e difusos pleitos das manifestações de 2013. A resposta é óbvia, apesar de incômoda para as alas radicais que querem ‘mudar o país’, sem dizer exatamente para onde. A todos – exceto aos bandidos – interessa uma polícia presente, preparada, capaz de servir, intervir e mediar conflitos que a sociedade não conseguiu equacionar por diálogo e consenso. O uso da força, é claro, faz parte desse repertório de ações, mas como recurso extremo.
Não é este o retrato das forças policiais Brasil afora. Tampouco foram os manifestantes os primeiros a reivindicar mudanças nas instituições – particularmente as militares. O relatório de 2014 da organização Human Rights Watch, no capítulo dedicado ao Brasil, cita as 1.890 mortes atribuídas a policiais no ano de 2012 – dado fornecido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Diz o relatório: “Nem todas as mortes ocorridas em decorrência de ação policial resultam do uso legítimo de força”. Separados os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, houve naquele ano, respectivamente, 165 e 362 homicídios cometidos por agentes. O documento destaca como exemplo o caso do pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido desde 14 de julho do ano passado na favela da Rocinha, no Rio. Vinte e cinco policiais militares foram denunciados pelos crimes de tortura, assassinato, ocultação do cadáver e obstrução da Justiça.
Há um desencontro histórico entre o que se quer da polícia e o modelo que os governos mantêm nas instituições e na forja de novos policiais. Apesar de graduados em épocas diferentes, são parecidíssimos, em sua formação, os 79 PMs réus pelo massacre de 111 presos do Carandiru, em 1992, e os 25 policiais agora julgados no Rio de Janeiro pela morte de Amarildo. Os agentes do Carandiru foram treinados entre as décadas de 70 e 80; os do Rio, em sua maioria, são egressos de turmas dos anos 2010, dos bancos da academia dedicados a formar a nova polícia concebida pelo secretário de Segurança de Estado, José Mariano Beltrame. Na avaliação de especialistas em segurança pública ouvidos pelo site de VEJA, mudanças pontuais, como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) ou os programas que trazem pequenas inovações, não são suficientes para entregar à sociedade uma polícia livre de vícios e mais voltada para o serviço ao cidadão do que para a guerra.
Militares – É a PM o alvo maior das denúncias de abusos, corrupção, ineficiência e, até, por sua ausência. Afinal, na divisão de competências estabelecida entre a polícia judiciária e a ostensiva, coube aos homens e mulheres fardados a missão de travar o corpo a corpo com a população, em situações que vão das operações de trânsito à contenção de protestos.
A antropóloga Haydée Caruso, professora da UnB, pesquisou a formação dos praças da Polícia Militar do Rio em trabalho de mestrado entre 2002 e 2004. Constatou que as principais instruções de procedimentos datavam da década de 80. O que havia de “novo” eram manuais criados em 1983 pelo coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, que comandou a instituição nos anos 80 e é considerado o criador dos postos de policiamento comunitário em favelas do Rio. As disciplinas que dominam os currículos são as de ênfase jurídica e militar.
"As academias de hoje formam profissionais inseguros, que têm pouco conhecimento sobre a realidade da rua e do que a população quer desse policial. Rapidamente os conceitos novos são suprimidos pelo que dita a prática dos veteranos. O treinamento formal, de certa forma, melhorou. Mas não o suficiente para transformar os padrões de comportamento e a relação que o agente estabelece com a população”, afirma Haydée.
A formação dos agentes é um reflexo da forma como foram concebidas as instituições policiais, um problema bem anterior à ditadura militar. As forças que hoje atuam nas cidades nasceram com o intuito de servir à sociedade democrática. “Temos no Brasil uma cultura policial muito arraigada, anterior até à ditadura militar. Nossa estrutura policial foi concebida para finalidades não vinculadas à sociedade democrática, com a polícia que caçava escravos, formada por jagunços e milícias com a finalidade de cumprir interesses que não são os da cidadania, em um tempo de desigualdade social muito grande”, explica o sociólogo Rodrigo Azevedo, professor e pesquisador da PUC-RS, especializado em ciências criminais.
A divisão de competências entre as instituições civis e militares criou no Brasil um padrão que tem, ao mesmo tempo, sobreposições e descontinuidade de competências. É a Polícia Militar que age na rua, aborda o cidadão, prende suspeitos e conduz as “ocorrências”. Mas é a Polícia Civil a encarregada de registrar, encarcerar, indiciar e encaminhar os casos ao Ministério Público e, finalmente, à Justiça. Em resumo, uma força detém os registros, os dados específicos e a documentação sobre a criminalidade; e é outra corporação a encarregada de prevenir o crime, atuar nos locais e momentos em que determinado delito pode ocorrer. Na prática, essa fissura no processo também cria disputa de poder, com os comandos das duas instituições disputando controle, por exemplo, sobre as interceptações telefônicas e sobre posições no Executivo – mais especificamente nas secretarias de Segurança e nos ministérios ligados a essa área.
A fissura nesse procedimento alimenta uma corrente que defende a desmilitarização da polícia. Coordenador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (Crisp/UFMG), o sociólogo Claudio Beato rejeita medidas abruptas e radicais sobre as PMs. “A desmilitarização saiu das ruas muito desfocada. De fato, temos problemas com o sistema no qual duas polícias trabalham sobre a mesma coisa. A estrutura dupla não funciona. É preciso criar uma polícia que funcione paralelamente às atuais, até uma substituição completa. Seria algo como uma polícia metropolitana”, defende Beato.
A desmilitarização, isoladamente, não é solução, indicam especialistas ouvidos pelo site de VEJA. Afinal, as instituições civis também são corroídas por corrupção, corporativismo e pressões políticas e ideológicas. “A Polícia Civil é cartorial, burocrática, não investiga. O delegado de polícia – um bacharel em Direito – é muito descolado do processo de investigação. Lida com tiras que cumprem processos viciados de uma rotina não necessariamente compatível com que diz essa chefia”, exemplifica Azevedo.
Truculência – De forma geral, as polícias recebem mais críticas por excessos do que por suas omissões. De acordo com Luciane Patrício, superintendente de educação da Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro, o currículo de formação dos praças da PM foi reformulado em 2012, com mais foco em disciplinas técnicas e conteúdo humanístico. Mas ela reconhece que as boas práticas ensinadas na academia ainda precisam ser respaldadas por uma mudança na "estrutura institucional". "Toda a estrutura institucional precisa caminhar nessa mesma direção. Essa lógica de formação militar está em disputa com uma lógica que defende um policial que preste serviço para a comunidade. Ainda predomina uma doutrina militar, de que existe um inimigo público a ser perseguido. Acredito, porém, numa superação da lógica cidadã, de que a polícia é prestadora de serviço e não para fazer guerra", diz Luciane.
As UPPs ainda são, com todos os defeitos, o programa que mais apresentou resultados no Rio de Janeiro – um local onde o crescimento do tráfico de drogas e das quadrilhas parecia algo impossível de combater. Mas, como alertam os especialistas em segurança, como projeto pontual, as unidades da polícia instaladas em favelas têm limitações. O pedido de ajuda ao governo federal e às Forças Armadas, que possibilitam agora a ocupação do Complexo da Maré, comprova a tese. As UPPs são vitais para que o Estado do Rio não regrida, mas sozinhas não dão conta do problema. Desde a ocupação do Morro Dona Marta, em Botafogo, em 2008, até o estágio atual, o programa se expandiu e abarcou ao todo 37 favelas. Em algumas delas, no entanto, o objetivo de “pacificar” ainda é algo distante, e os PMs tornaram-se alvos de bandidos ou, como a “velha polícia”, carecem de credibilidade.
Segurança. Criticadas por seu grau de violência e pela baixa eficácia, instituições formam policiais com vícios da ditadura militar. Governos insistem em soluções pontuais que sucumbem às antigas práticas de corrupção e corporativismo
João Marcello Erthal e Daniel Haidar
Policiais durante treinamento da Polícia Militar para conter protestos, no Rio (Yasuyoshi Chiba/AFP)
Quem precisa de polícia? A pergunta carregada de indignação estava entre os muitos e difusos pleitos das manifestações de 2013. A resposta é óbvia, apesar de incômoda para as alas radicais que querem ‘mudar o país’, sem dizer exatamente para onde. A todos – exceto aos bandidos – interessa uma polícia presente, preparada, capaz de servir, intervir e mediar conflitos que a sociedade não conseguiu equacionar por diálogo e consenso. O uso da força, é claro, faz parte desse repertório de ações, mas como recurso extremo.
Não é este o retrato das forças policiais Brasil afora. Tampouco foram os manifestantes os primeiros a reivindicar mudanças nas instituições – particularmente as militares. O relatório de 2014 da organização Human Rights Watch, no capítulo dedicado ao Brasil, cita as 1.890 mortes atribuídas a policiais no ano de 2012 – dado fornecido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Diz o relatório: “Nem todas as mortes ocorridas em decorrência de ação policial resultam do uso legítimo de força”. Separados os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, houve naquele ano, respectivamente, 165 e 362 homicídios cometidos por agentes. O documento destaca como exemplo o caso do pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido desde 14 de julho do ano passado na favela da Rocinha, no Rio. Vinte e cinco policiais militares foram denunciados pelos crimes de tortura, assassinato, ocultação do cadáver e obstrução da Justiça.
Há um desencontro histórico entre o que se quer da polícia e o modelo que os governos mantêm nas instituições e na forja de novos policiais. Apesar de graduados em épocas diferentes, são parecidíssimos, em sua formação, os 79 PMs réus pelo massacre de 111 presos do Carandiru, em 1992, e os 25 policiais agora julgados no Rio de Janeiro pela morte de Amarildo. Os agentes do Carandiru foram treinados entre as décadas de 70 e 80; os do Rio, em sua maioria, são egressos de turmas dos anos 2010, dos bancos da academia dedicados a formar a nova polícia concebida pelo secretário de Segurança de Estado, José Mariano Beltrame. Na avaliação de especialistas em segurança pública ouvidos pelo site de VEJA, mudanças pontuais, como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) ou os programas que trazem pequenas inovações, não são suficientes para entregar à sociedade uma polícia livre de vícios e mais voltada para o serviço ao cidadão do que para a guerra.
Militares – É a PM o alvo maior das denúncias de abusos, corrupção, ineficiência e, até, por sua ausência. Afinal, na divisão de competências estabelecida entre a polícia judiciária e a ostensiva, coube aos homens e mulheres fardados a missão de travar o corpo a corpo com a população, em situações que vão das operações de trânsito à contenção de protestos.
A antropóloga Haydée Caruso, professora da UnB, pesquisou a formação dos praças da Polícia Militar do Rio em trabalho de mestrado entre 2002 e 2004. Constatou que as principais instruções de procedimentos datavam da década de 80. O que havia de “novo” eram manuais criados em 1983 pelo coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, que comandou a instituição nos anos 80 e é considerado o criador dos postos de policiamento comunitário em favelas do Rio. As disciplinas que dominam os currículos são as de ênfase jurídica e militar.
"As academias de hoje formam profissionais inseguros, que têm pouco conhecimento sobre a realidade da rua e do que a população quer desse policial. Rapidamente os conceitos novos são suprimidos pelo que dita a prática dos veteranos. O treinamento formal, de certa forma, melhorou. Mas não o suficiente para transformar os padrões de comportamento e a relação que o agente estabelece com a população”, afirma Haydée.
A formação dos agentes é um reflexo da forma como foram concebidas as instituições policiais, um problema bem anterior à ditadura militar. As forças que hoje atuam nas cidades nasceram com o intuito de servir à sociedade democrática. “Temos no Brasil uma cultura policial muito arraigada, anterior até à ditadura militar. Nossa estrutura policial foi concebida para finalidades não vinculadas à sociedade democrática, com a polícia que caçava escravos, formada por jagunços e milícias com a finalidade de cumprir interesses que não são os da cidadania, em um tempo de desigualdade social muito grande”, explica o sociólogo Rodrigo Azevedo, professor e pesquisador da PUC-RS, especializado em ciências criminais.
A divisão de competências entre as instituições civis e militares criou no Brasil um padrão que tem, ao mesmo tempo, sobreposições e descontinuidade de competências. É a Polícia Militar que age na rua, aborda o cidadão, prende suspeitos e conduz as “ocorrências”. Mas é a Polícia Civil a encarregada de registrar, encarcerar, indiciar e encaminhar os casos ao Ministério Público e, finalmente, à Justiça. Em resumo, uma força detém os registros, os dados específicos e a documentação sobre a criminalidade; e é outra corporação a encarregada de prevenir o crime, atuar nos locais e momentos em que determinado delito pode ocorrer. Na prática, essa fissura no processo também cria disputa de poder, com os comandos das duas instituições disputando controle, por exemplo, sobre as interceptações telefônicas e sobre posições no Executivo – mais especificamente nas secretarias de Segurança e nos ministérios ligados a essa área.
A fissura nesse procedimento alimenta uma corrente que defende a desmilitarização da polícia. Coordenador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (Crisp/UFMG), o sociólogo Claudio Beato rejeita medidas abruptas e radicais sobre as PMs. “A desmilitarização saiu das ruas muito desfocada. De fato, temos problemas com o sistema no qual duas polícias trabalham sobre a mesma coisa. A estrutura dupla não funciona. É preciso criar uma polícia que funcione paralelamente às atuais, até uma substituição completa. Seria algo como uma polícia metropolitana”, defende Beato.
A desmilitarização, isoladamente, não é solução, indicam especialistas ouvidos pelo site de VEJA. Afinal, as instituições civis também são corroídas por corrupção, corporativismo e pressões políticas e ideológicas. “A Polícia Civil é cartorial, burocrática, não investiga. O delegado de polícia – um bacharel em Direito – é muito descolado do processo de investigação. Lida com tiras que cumprem processos viciados de uma rotina não necessariamente compatível com que diz essa chefia”, exemplifica Azevedo.
Truculência – De forma geral, as polícias recebem mais críticas por excessos do que por suas omissões. De acordo com Luciane Patrício, superintendente de educação da Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro, o currículo de formação dos praças da PM foi reformulado em 2012, com mais foco em disciplinas técnicas e conteúdo humanístico. Mas ela reconhece que as boas práticas ensinadas na academia ainda precisam ser respaldadas por uma mudança na "estrutura institucional". "Toda a estrutura institucional precisa caminhar nessa mesma direção. Essa lógica de formação militar está em disputa com uma lógica que defende um policial que preste serviço para a comunidade. Ainda predomina uma doutrina militar, de que existe um inimigo público a ser perseguido. Acredito, porém, numa superação da lógica cidadã, de que a polícia é prestadora de serviço e não para fazer guerra", diz Luciane.
As UPPs ainda são, com todos os defeitos, o programa que mais apresentou resultados no Rio de Janeiro – um local onde o crescimento do tráfico de drogas e das quadrilhas parecia algo impossível de combater. Mas, como alertam os especialistas em segurança, como projeto pontual, as unidades da polícia instaladas em favelas têm limitações. O pedido de ajuda ao governo federal e às Forças Armadas, que possibilitam agora a ocupação do Complexo da Maré, comprova a tese. As UPPs são vitais para que o Estado do Rio não regrida, mas sozinhas não dão conta do problema. Desde a ocupação do Morro Dona Marta, em Botafogo, em 2008, até o estágio atual, o programa se expandiu e abarcou ao todo 37 favelas. Em algumas delas, no entanto, o objetivo de “pacificar” ainda é algo distante, e os PMs tornaram-se alvos de bandidos ou, como a “velha polícia”, carecem de credibilidade.
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