TRAGÉDIA DE SANTA MARIA
A INVESTIGAÇÃO
O comando das investigações da maior tragédia da história do Estado está nas mãos de dois velhos amigos, colegas nos tempos da faculdade e parceiros na Academia de Polícia.
Desde a madrugada de 27 de janeiro, quando o incêndio na boate Kiss dilacerou famílias ao tirar a vida de mais de duas centenas de jovens, Marcelo Arigony, responsável pelo caso, e Sandro Meinerz, seu braço direito, passam noites em claro, dividem decisões difíceis e partilham o desejo de fazer justiça.
Arigony e Meinerz formaram-se em Direito na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em 1995 e sempre sonharam em ser policiais civis. Passaram em concurso público e fizeram juntos o curso para delegado.
Afastaram-se depois de formados – um foi atuar em São Borja e o outro, em Rio Grande – mas logo se reencontraram em Santa Maria. Arigony tornou-se delegado regional. Meinerz assumiu a Delegacia Especializada em Furtos, Roubos, Entorpecentes e Capturas (Defrec) da cidade. Desde o dia 27, estão mais unidos do que nunca e ditam o ritmo da investigação.
Ambos são professores universitários, dão aula de Direito Penal, mas têm perfis distintos – e complementares. Arigony, 40 anos, é expansivo. Conhecido na cidade, gosta de frequentar bons restaurantes e é popular no Facebook, com 11,6 mil seguidores. No trabalho, é do tipo operacional. É um delegado “linha de frente”, no jargão policial. Meinerz, 42 anos, é o oposto. Definido com adjetivos como “tranquilo” e “ponderado” por inspetores e escrivães, atua nos bastidores. É o “intelectual” da dupla.
Naquele domingo fatídico, Arigony chegou primeiro à danceteria. O relógio marcava 4h quando ele foi informado do desastre por telefone. Assustado, ligou primeiro para a filha, Ana Luiza, 18 anos, em busca de notícias. Tinha receio de que ela pudesse estar na Kiss. Para seu alívio, a estudante dormia e, naquela madrugada, não havia saído com as amigas.
– Pai, a Sabrina estava lá. Será que ela está bem? – quis saber a estudante, preocupada.
Próximas, as duas costumavam sair juntas em bares e danceterias. Sabrina era prima de Arigony. Sua morte seria confirmada em seguida pelo delegado regional. Dias depois, ele participaria de um protesto – com megafone em punho – clamando por justiça nas ruas do município, ao lado de pais e mães enlutados.
– Todo mundo me criticou. Queriam até me tirar do caso, mas, desde o início, fomos transparentes. Procuramos OAB, Defensoria, Ministério Público. Todos foram chamados. Não estou trabalhando sozinho – desabafa.
Naquela madrugada, ao chegar à Rua dos Andradas, deparou com o que chama de “um cenário de guerra”. Ainda havia fumaça, os corpos estavam estendidos no chão, os bombeiros trabalhavam no rescaldo do incêndio.
– Ninguém no mundo estaria preparado para aquilo – recorda Arigony, que ostenta olheiras profundas desde então.
O policial alertou os superiores e, em seguida, convocou Meinerz para ajudá-lo. Um comitê de gerenciamento de crise teve de ser montado às pressas. A primeira reunião aconteceu no estacionamento de um supermercado, do outro lado da rua. Ao redor, moradores incrédulos comprimiam-se contra as fitas de isolamento.
– Tínhamos que decidir para onde levar os corpos, como lidar com tudo aquilo – lembra Arigony, que ainda se emociona com a tragédia.
Enquanto policiais e peritos trabalhavam na transferência e identificação das vítimas fatais, quatro agentes e uma delegada, a plantonista Luiza Sousa, davam início às investigações, ouvindo as primeiras testemunhas – entre elas Elissandro Spohr, o Kiko, um dos proprietários da danceteria.
Arigony e Meinerz dirigiram-se ao Centro Desportivo Municipal, para onde os cadáveres começaram a ser levados em caminhões frigoríficos. Em menos de 24 horas, a tarefa de remoção, identificação e liberação das vítimas estaria concluída. Para os dois parceiros, o trabalho estava apenas começando.
– Depois disso, os que ajudaram foram descansar, menos nós. Foi aí que o mundo caiu. A imprensa do mundo inteiro queria respostas – relata Arigony.
A 1ª Delegacia da Polícia Civil transformou-se em QG, e os policiais disponíveis foram chamados. Com reforços vindos de fora, 27 agentes passaram a atuar no caso, junto a uma banca de cinco delegados: Arigony e Meinerz no comando, Luiza Sousa, escalada para cuidar dos depoimentos, Marcos Vianna, a cargo das diligências, e Gabriel Zanella, responsável por analisar os documentos da casa noturna.
Dali em diante, os ex-colegas de faculdade, mais visados pela mídia, passariam a ser seguidos dia e noite por jornalistas e curiosos. Os telefones não paravam de tocar. Autoridades chegavam a Santa Maria. Ambos dormiriam uma hora e meia por noite. O assédio era tamanho que Arigony resolveu trocar o número do celular. A pressão, segundo eles, não veio do governo do Estado nem do poder municipal, mas da população e da imprensa.
– Parecia um “big brother” – resume Meinerz.
Por sugestão do chefe de Polícia, Ranolfo Vieira Júnior, os delegados passaram a dar coletivas diárias às 17h, para concentrar as informações aos veículos de comunicação e tentar reduzir as centenas de ligações. Poderiam ter optado por pedir à Justiça que o inquérito corresse em sigilo. Não fizeram isso por princípios.
– Como ficariam as famílias, sem informação? E a sociedade? Entendemos que, desde que não atrapalhasse a investigação, toda informação deveria ser repassada. E é o que estamos fazendo – explica Arigony.
A semana seguinte à tragédia começou com as prisões dos dois proprietários da boate e de dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, e com ofícios à prefeitura e ao Corpo de Bombeiros. Meinerz e Arigony queriam cópias dos registros referentes ao estabelecimento.
Denúncia anônima leva delegados à prefeitura
Os dois chegaram a ser repreendidos em um programa de TV por não terem pedido mandado de busca e apreensão para vasculhar os arquivos da administração municipal. Arigony argumenta que o prefeito Cezar Schirmer (PMDB) estava colaborando e que, em 24 horas, toda a papelada solicitada havia sido fornecida.
– Não tínhamos razões para adotar uma medida extrema. Se eu mando meus agentes lá para recolher tudo, abro precedentes para conclusões apressadas. A prefeitura poderia amanhecer incendiada, e o prefeito, linchado – detalha Arigony.
Uma denúncia anônima segundo a qual servidores municipais estariam escondendo documentos em uma repartição pública chegou a preocupar a equipe. Para tirar a dúvida, os delegados procuraram o prefeito e foram até o local do suposto esconderijo. Nada foi encontrado.
Tanto a prefeitura quanto os bombeiros, conforme Arigony, responderam a seus ofícios de imediato. A partir daí, os policiais descobriram que o Plano de Prevenção e Combate a Incêndio (PPCI), que deveria ser assinado por um responsável técnico, na verdade, era apenas uma coletânea de recomendações – feitas pelos próprios bombeiros, por meio de um software. Estava aberta uma segunda frente de apuração: a liberação dos alvarás.
– Para esclarecer as responsabilidades, decidimos ouvir os bombeiros da área de prevenção e os fiscais e secretários municipais envolvidos – afirma Meinerz.
Durante a semana, os policiais acabariam sendo obrigados a abrir uma terceira frente, com a descoberta de que uma empresa de propriedade de um bombeiro e de sua mulher – a Hidramix – havia realizado serviços na boate Kiss.
– As coisas foram aparecendo, podendo estar conectadas de forma direta ou indireta à tragédia. Não podíamos deixar nada escapar – reforça o delegado regional.
No dia 30, Meinerz comandou a primeira reconstituição. Levou cinco testemunhas ao local, entre funcionários e frequentadores. Queria saber onde o fogo começou. Os sobreviventes apontaram para o teto do palco, onde havia uma espuma cinzenta e malcheirosa.
Um vilão anunciado em entrevista coletiva
Na tarde seguinte, os policiais convocaram a entrevista coletiva que ficaria marcada pela apresentação do grande vilão: o revestimento de poliuretano. Usando luvas cirúrgicas, Arigony mostrou um naco da espuma e garantiu que, se o material não estivesse lá, a dimensão do desastre teria sido menor. Segundo ele, foi o cianeto, elemento químico liberado na combustão do produto, o responsável por asfixiar centenas de jovens em segundos.
A informação foi parar nas capas dos jornais e causou burburinho nos corredores do Instituto-geral de Perícias (IGP), na Capital. Nos bastidores, peritos classificaram a atitude do delegado regional como “precipitada”, já que o resultado dos exames ainda não estava pronto. Amostras de sangue chegaram a ser levadas a um laboratório especializado, na Argentina, para diagnosticar a possível presença do veneno. Até o início da semana, a questão continuava em aberto.
Arigony se defende:
– Eu disse que era cianeto, porque alguém me disse. Eu não tiraria isso da minha cabeça. Tivemos consultores nos auxiliando, gente especializada.
Meinerz complementa:
– Os depoimentos foram muito claros. As pessoas respiravam duas vezes aquela fumaça e caíam. Isso não é normal.
Em busca de respostas, a segunda semana de investigações seria marcada por mais depoimentos e novas perícias. Técnicos do Departamento de Criminalística (DC) voltaram à cena da tragédia, e os bombeiros que participaram do combate às chamas também foram ouvidos.
No feriado de Carnaval, os delegados aproveitaram para colocar a papelada em dia. Ao todo, o inquérito deve ultrapassar a marca das 5 mil páginas, incluindo os testemunhos de mais de 500 depoentes.
– Conseguimos descansar e refletir, pensar na investigação sem aquela correria toda – confidencia Arigony.
O retorno dos trabalhos seria marcado por visitas oficiais, pela criação de um site para que sobreviventes se cadastrem e por novos e decisivos interrogatórios. Na semana passada, personagens-chave começaram a ser ouvidos, entre eles o bombeiro que concedeu o primeiro alvará da corporação ao estabelecimento.
Agora, a expectativa é concluir o inquérito até 3 de março. No que depender de Arigony, os responsáveis irão a júri popular:
– Vamos esclarecer os fatos, e as responsabilidades virão.
É o que Santa Maria espera.
FRANCISCO AMORIM E JULIANA BUBLITZ
Nenhum comentário:
Postar um comentário