REVISTA ÉPOCA, 12/12/2014 07h00
O assalto ao Museu Castro Maya. Um crime sem solução. O crime é um dos dez maiores roubos de arte do mundo. Oito anos depois, ninguém foi preso, e a polícia parou de investigar
MARCELO BORTOLOTI
BEM ORIENTADOS O Museu Castro Maya no dia do assalto.Os ladrões levaram o que havia de mais valioso. Na fuga, ainda roubaram duas bolsas de turistas (Foto:Arquivo/Agência O Globo)
Capítulo 1
PICASSOS E MATISSES NO MEIO DE UM BLOCO DE CARNAVAL
Sexta-feira, véspera do Carnaval de 2006. Dia em que o tradicional Bloco das Carmelitas reúne foliões vestidos de freira no bairro de Santa Teresa, no Rio, e causa grande transtorno na vizinhança. No mesmo bairro, o Museu Castro Maya, fundado em 1963 com a casa e a coleção do industrial de mesmo nome, dispensa sua equipe mais cedo. Foi esse o palco do maior roubo de obras de arte da história do Brasil, considerado pelo FBI um dos dez maiores do mundo. Quatro homens com menos de 30 anos, um deles menor de idade, vestindo bonés e camisetas, entraram no museu como visitantes, renderam vigias que não estavam armados, arrancaram quatro quadros das paredes e fugiram, misturados na bagunça dos carmelitas. Aproveitaram a oportunidade para levar a bolsa de duas turistas estrangeiras que visitavam o museu. Até hoje, não foram encontrados os culpados – e a história da investigação diz muito sobre o baixo índice de solução de crimes no Brasil.
Os bandidos foram orientados por alguém a pegar o que havia de mais valioso em exposição. Subiram ao 1o andar, onde ficava a sala de jantar e a biblioteca. Retiraram da parede da biblioteca uma pintura grande de Pablo Picasso e um quadro do francês Henri Matisse. Dias depois, ele foi oferecido por US$ 13 milhões num site de leilões russo. Da parede oposta, arrancaram a obra Os dois balcões, da fase mais criativa de Salvador Dalí. Da sala de jantar, retiraram uma paisagem marinha do impressionista Claude Monet. Cortaram o fio de náilon que a sustentava usando uma faca de prata que estava sobre a mesa.
A fuga foi marcada por atropelos. Coube ao menor dos bandidos carregar o quadro A dança, de Picasso, com 1 metro de altura e moldura pesadíssima. Atrapalhado com o peso e o tamanho da obra, ele caiu de costas na trilha pelo meio da mata, usada na fuga. Com a queda, a pintura de US$ 15 milhões sofreu um rasgo lateral.
Quando o perito da Polícia Federal chegou ao museu, policiais militares, civis, funcionários e até jornalistas circulavam pela cena do crime. O agente coletou impressões digitais numa travessa de louça e num vidro da estante, retirado pelos ladrões para roubar um volume de gravuras de Picasso.
Capítulo 2
OS TELEFONES FORAM GRAMPEADOS, MAS NINGUÉM GRAVOU AS ESCUTAS
A investigação caiu nas mãos de Isabelle Vasconcellos Kishida, uma delegada atraente que tinha 27 anos, responsável pela Delegacia de Combate a Crimes contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da Polícia Federal. Surpreendida no meio do Carnaval, Isabelle interrogou vigilantes, mandou fazer retrato falado dos bandidos e descobriu no Morro dos Prazeres, não muito longe do museu, indícios de que os ladrões haviam queimado a moldura de três quadros para facilitar o transporte das obras.
Uma denúncia anônima a levou até Paulo Gessé, motorista que ajudara na fuga dos bandidos, numa Kombi. Ele morava a 500 metros dali. Confessou sua participação e disse que foi coagido. Imediatamente, Isabelle pediu que o telefone de Gessé fosse grampeado. Era Carnaval, e não havia ninguém na central de escuta da Polícia Federal. Os agentes de plantão haviam sido deslocados para ajudar numa apreensão de 500 quilos de maconha. Isabelle improvisou. Pediu que a operadora de telefonia desviasse o grampo para seu celular pessoal. Durante os cinco dias em que o telefone de Gessé foi grampeado, só ela conseguiu ouvir as conversas. Nenhuma ligação foi gravada. Segundo Isabelle, no dia seguinte ao crime, Gessé recebeu a chamada de alguém informando que havia “dado tudo certo” e que sua Kombi retornava da “entrega”. Não foi possível localizar posteriormente o número do telefone de onde partiu a ligação. Dias depois, noutra conversa que Isabelle acompanhou, o advogado de Gessé disse que manteve contato com “o chefe”. A declaração de Isabelle foi suficiente para que o juiz decretasse a prisão preventiva de Gessé. Quando ele foi julgado, não havia provas concretas. O próprio Ministério Público Federal pediu a absolvição, alegando que “as palavras da douta Delegada Federal restam vazias” diante da ausência das gravações.
Capítulo 3
A CAÇA AOS SUSPEITOS
As investigações prosseguiram. Um crime sofisticado como esse certamente deveria ter um mandante, possivelmente estrangeiro. Não ficou esclarecido se a oferta da pintura de Matisse no site russo era real nem se fora feita pelo próprio bandido. Quadros roubados que entram na lista da Interpol, como nesse caso, não são oferecidos em venda pública. O mandante poderia guardar em casa, para seu próprio deleite, ou vender no mercado negro a colecionadores com a mesma disposição. A polícia chegou a alguns nomes por meio de denúncias anônimas. Um deles era Patrice Charles Rouge, francês naturalizado brasileiro, interessado em arte, que costumava trabalhar no mercado de pedras preciosas. Ele morava em Santa Teresa, perto do museu e do Morro dos Prazeres. Isabelle reuniu seus homens e partiu para uma busca em sua casa. Era um dia de semana, no meio da tarde. Os agentes vestidos de preto, fortemente armados, cercaram a entrada. Um deles tocou o interfone e disse à empregada que tinha uma encomenda para entregar. Quando a moça saiu, eles a renderam e invadiram o lugar.
Dentro da casa, um homem trocava de roupa no quarto. Quando os agentes entraram, encontraram o ator Osmar Prado. O susto foi das duas partes. Osmar comprara a casa havia dois anos. Achou que os policiais fossem bandidos. Desfeito o equívoco, ele repreendeu duramente os agentes, aos berros. “Eles me acalmaram, pediram desculpas pelo erro e disseram que entraram assim, com receio de que o bandido jogasse as obras no mato. Na época, me pediram para não contar o ocorrido para ninguém, e realmente não contei”, diz Osmar.
AS OBRAS
1. As falésias perto de Dieppe, de Claude Monet
2. Os dois balcões, de Salvador Dalí
3. Jardim de Luxemburgo, de Henri Matisse
4. A dança, de Pablo Picasso
5. Chegou-se a oferecer recompensa por informações sobre o roubo
(Fotos: SuperStock/Glow Images, repdrodução (2), Glow Images/Art Images Archive, Ana Carolina Fernandes/Folhapress)
O outro suspeito – talvez em dupla com Patrice – era o também francês Michel Cohen. Ele atuara durante 20 anos no mercado de arte americano e praticara fraudes envolvendo quadros de artistas como Picasso, Matisse e Dalí. Cohen pegava pinturas em consignação nas grandes galerias ou casas de leilão nos Estados Unidos, como a Sotheby’s, as vendia a colecionadores no mundo todo e não repassava o dinheiro recebido. Ele mudou-se para o Brasil após ser indiciado por mais de 20 casos de fraude nos Estados Unidos. Em 2003, foi preso pela Interpol no centro do Rio. O governo americano pediu sua extradição. Enquanto aguardava o julgamento, ele foi mandado para o presídio Ary Franco, onde dividia com outros presos uma cela úmida no subsolo. Alegando problemas de saúde, foi transferido para um hospital penitenciário. Um dia simulou um ataque. Precisava de transferência urgente para outro hospital. A ambulância estava quebrada, e o agente penitenciário Edmar Barbosa de Andrade o levou em seu carro. Não algemou Cohen, nem travou as portas do carro. Quando o veículo parou no sinal vermelho, Cohen abriu a porta e sumiu. Edmar foi autuado por facilitação da fuga. A extradição de Cohen foi negada pelo Supremo Tribunal Federal, porque o governo americano não enviara os documentos em português – e porque Cohen já estava desaparecido mesmo. O roubo ao museu aconteceu três anos depois de sua fuga. A delegada Isabelle tentou localizá-lo, sem sucesso.
Em 2011, cinco anos após o roubo, a delegada Simone Soares Leite substituiu Isabelle. Ela tomou uma iniciativa aparentemente óbvia, que até então ninguém tomara: pediu a quebra do sigilo telefônico dos suspeitos para verificar o histórico das ligações seis meses antes e seis meses depois do crime. A quebra se referia ao período entre setembro de 2005 e setembro de 2006. As operadoras responderam que tal informação era impossível, pois a lei determina o prazo máximo de cinco anos para guardar o histórico das chamadas.
Em outubro de 2013, o procurador do Ministério Público Fernando José Aguiar enviou um despacho à Polícia Federal questionando por que, até aquele momento, sete anos depois do roubo, o resultado dos exames das impressões digitais colhidas no museu não saíra. Dois meses depois, o perito Márcio Corrêa Martins, que colhera as impressões digitais, informou que o local do crime não fora preservado e que nenhum dos vestígios coletados tinha qualidade técnica suficiente para identificar qualquer suspeito. Depois de novos trâmites burocráticos, em setembro deste ano, o delegado Éder Francis Oliveira enviou um relatório ao juiz responsável e pediu o fim das investigações.
ÉPOCA encontrou pistas dos dois suspeitos que apareceram na investigação. Patrice tem em seu nome uma empresa chamada Brazilian Showroom, com endereço na Upper Richmond Road, em Londres. Também consta um endereço residencial na cidade de Albi, na França. Ele tem uma filha advogada, dona de um escritório no centro do Rio. Ela nega a participação do pai no assalto. O francês Cohen continua com paradeiro desconhecido. Sua mulher, Ulricke Zenkell, mora na França, com os três filhos do casal. Ela trabalha com joias numa empresa chamada Société d’Affinage et Apprêts de Métaux Précieux, com sedes nas cidades de Limonest e Lyon. Gregória, como é conhecida no Brasil, tem conta no Facebook e vários amigos brasileiros. Os filhos de Cohen visitam o Brasil todos os anos.
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