ZERO HORA, CADERNO PROA 16/11/2014 | 19h46
por Luiz Eduardo Soares
O processo civilizador no Ocidente resolveu o impasse feudal da fragmentação suprimindo a dispersão das armas e da força, e as reunindo sob a égide do Estado. A centralização reduziu a violência e ofereceu aos homens mais tempo de vida, assim como novos focos para o desenvolvimento pessoal. As mulheres permaneceram submetidas ao domínio masculino, e as divisões de classe continuaram produzindo iniquidades. Entretanto, as portas abriram- se para a reconfiguração do trabalho, a laicização do poder, a explosão científico- tecnológica e a expansão dos mercados. Os conflitos sociais rasgaram novos horizontes, e o mundo dos direitos emergiu, trazendo consigo a subversiva hipótese democrática, inicialmente formulada com a timidez típica do primeiro liberalismo. No século 18, a revolução burguesa proclamou compromissos com liberdade, igualdade e fraternidade. Não lhes foi fiel, mas instaurou contradições que precipitariam a revolução soviética e seus desdobramentos, ao longo do século 20. O primado da igualdade passou a disputar espaço na agenda política global com a liberdade, opondo sistemas que, sem de fato encarnar plenamente esses valores, de sua evocação extraíam as respectivas fontes de legitimidade. A guerra fria esgotou- se, o capitalismo impôs sua incontrastável hegemonia, mas mantêm- se vivas e crescentes as tensões em torno da distribuição da riqueza e do exercício efetivo da participação cidadã. A democracia tem sido continuamente desafiada e contestada, e ainda está por demonstrar sua capacidade de equilibrar conflitos e respeitar valores em cujo nome afirmou sua supremacia moral.
Nesse contexto, entende- se a centralidade da polícia. Ela é tão importante quanto o próprio Estado, porque constitui exatamente uma de suas dimensões essenciais: o monopólio do uso da força no interior do país, a subordinação da violência à norma, a defesa do mais fraco ante o apetite predatório do mais forte. Antes da criação da primeira polícia moderna, na Inglaterra, no século 19, forças locais coletivas e justiceiros individuais atuavam como linchadores, fazendo “ justiça” pelas próprias mãos, promovendo a barbárie no coração das cidades supostamente civilizadas. A grande questão está na natureza do Estado e, consequentemente, da polícia. Se uma sociedade vive sob a égide do Estado democrático de direito, em cujo âmbito os três poderes interagem com respeito ao primado da equidade e da liberdade, da participação cidadã e do compromisso republicano com a universalidade dos bens públicos, o recurso à coerção ou o uso da força por seu legítimo agente interno, a polícia, apenas se justifica se os marcos da legalidade constitucional forem estritamente observados. Em outras palavras, a força do Estado só deve ser mobilizada em defesa dos direitos e nos limites ditados pelo gradiente do uso da força. A intensidade da força tem de corresponder ao grau de violência identificada no ato agressor. O objetivo do uso da força pela polícia não é punir ou vingar, mas impedir que a ação violadora de direitos cumpra- se ou prossiga, e repassar a avaliação à Justiça. Assim, a força letal só é legalmente aceitável e moralmente tolerável se não houver outro meio de impedir que o mesmo efeito, a morte, seja produzido pelo violador à vítima ou ao policial. Ser fiel a esse princípio é muito difícil: exige técnica apurada, sangue frio, capacidade de avaliação. Um roubo e uma prisão, por exemplo, não valem uma vida. Disparar arma de fogo sem que a vida própria ou alheia esteja em risco insofismável seria absurda transgressão ao mandato constitucional. Não há Estado democrático de direito sem que as polícias respeitem os limites de seu mandato constitucional e sem que se cumpra a equidade no acesso à Justiça. Se o Executivo exorbitar na aplicação de seu poder, os outros dois poderes e a sociedade não aceitarão e, portanto, haverá ou o recuo do( a) presidente ou seu impeachment. Mas o que é afinal a brutalidade policial letal praticada cotidianamente pelo Estado senão o golpe naturalizado contra a Constituição da República? Fala- se tanto em riscos bolivarianos, pois aí está, diante de nós, uma prática tirânica mais ostensiva e radical. Nós não a percebemos porque esse despotismo tem endereço exclusivo.
A história do Brasil tem sido pródiga em preservar a continuidade de dois fenômenos exorbitantes e interrelacionados, independentemente de regimes políticos: o racismo estrutural, que transporta os quatro séculos de escravidão até nossos dias pelo canal das desigualdades, e a violência policial, que devolve a desigualdade ao leito arcaico e vil da escravidão. No Brasil, entre 2009 e 2013, 11.197 pessoas foram mortas por ações policiais, o que corresponde a 6,3 vítimas por dia, em média – em dados relativos à população, isso equivale a cerca de 10 vezes mais do que o número de vítimas das polícias nos EUA. Investigações e punições ocorrem apenas excepcionalmente, apesar de sabermos que esses milhares de casos incluem inúmeras execuções extrajudiciais. O Ministério Público não vem cumprindo sua obrigação de exercer o controle externo da atividade policial. Esse drama escandaloso não parece sensibilizar autoridades políticas ou judiciais, muito menos os comandos das próprias instituições da segurança pública. São frequentes justificativas oficiais cínicas do tipo: “ não se faz omelete sem quebrar ovos” – desde que, e isso não se diz, os ovos sejam os filhos dos outros, especialmente os jovens pobres e negros dos territórios mais vulneráveis. Restam as entidades da sociedade civil que têm procurado sensibilizar a opinião pública e, por seu intermédio, os governos. Por tudo isso, louve- se a iniciativa da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos que propôs a criação de uma comissão análoga, a qual se debruçaria sobre o período democrático, posterior a 1988. Trazer a questão policial para o centro da agenda política é o único modo de completar a transição democrática no Brasil e repelir a barbárie.
por Luiz Eduardo Soares. Antropólogo, cientista político e escritor
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Analisando o que disse o professor Luiz Eduardo Soares nesta matéria, verifica-se um contraditório ao apontar a polícia pela causa e origem da violência e ao mesmo tempo identificar que, se "uma sociedade vive sob a égide do Estado democrático de direito, em cujo âmbito os três poderes interagem com respeito ao primado da equidade e da liberdade, da participação cidadã e do compromisso republicano com a universalidade dos bens públicos o recurso à coerção ou o uso da força por seu legítimo agente interno, a polícia, apenas se justifica se os marcos da legalidade constitucional forem estritamente observados. Em outras palavras, a força do Estado só deve ser mobilizada em defesa dos direitos e nos limites ditados pelo gradiente do uso da força.
Ocorre que não existe o "primado da equidade e da liberdade", a "participação cidadã" é de medo de retaliação diante da impunidade dos bandidos, e o tal "compromisso republicano"não existe, como também são limitados os marcos da legalidade democrática diante de leis permissivas, de um justiça leniente, de presídios caóticos, de forças policiais sucateadas, segregadas e abandonadas pelos Poderes da República que fazem os mesmo com as unidades federativas.
Realmente, pessoas são mortas nas operações, atentados e atos justiceiros porque há uma guerra urbana nas ruas envolvendo o crime organizado, poder financieiro, arsenal de guerra e domínio da política, dos presídios e de comunidades subjugadas, não reconhecida pelos Poderes, que vicia, alicia e aterroriza a população e coloca em risco a vida dos policiais que ousam enfrentar. E mata-se mais do que os EUA porque lá eles enfrentaram a guerra e venceram a custa de sangue de policiais, de juízes, de políticos e de liderança comunitárias que deram a vida para o Estado e a sociedade organizada apelar para integração e investimentos pesados no sistema criminal, leis severas, penas duras e presídios seguros. Aqui no Brasil, nada funciona e a polícia está no pincel contra o crime.
Assim, é uma falácia trazer só "a questão policial para o centro da agenda política"como "único modo de completar a transição democrática no Brasil e repelir a barbárie", pois, no Estado Democrático de Direito, a polícia é apenas a parte inicial do sistema de justiça criminal, e se não mudar as ligações, os processos e as decisões no judiciário; a estruturação do MP como instituição de denúncia e corregedoria; a supervisão da justiça na execução penal; a estrutura da defesa pública e privada; e a capacidade das forças policiais de prevenir, conter, investigar, periciar os delitos, como função essencial à justiça, sendo fortalecida, valorizada, controlada e efetiva; de nada vai adiantar MUDAR A POLÍCIA, pois os bandidos serão soltos, leves e impunes para vandalizar, furtar, lesionar, roubar, assaltar, matar e executar, organizando quadrilhas para dominar o Estado.
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