ALERTA: A criminalidade e a violência crescem de forma assustadora no Brasil. Os policiais estão prendendo mais e aprendendo muitas armas de guerra e toneladas de drogas. A morte e a perda de acessibilidade são riscos presentes numa rotina estressante de retrabalho e sem continuidade na justiça. Entretanto, os governantes não reconhecem o esforço e o sacrifício, pagam mal, discriminam, enfraquecem e segmentam o ciclo policial. Os policiais sofrem com descaso, políticas imediatistas, ingerência partidária, formação insuficiente, treinamento precário, falta de previsão orçamentária, corrupção, ingerência política, aliciamento, "bicos" inseguros, conflitos, autoridade fraca, sistema criminal inoperante, insegurança jurídica, desvios de função, disparidades salariais, más condições de trabalho, leis benevolentes, falência prisional, morosidade dos processos, leniência do judiciário e impunidade que inutilizam o esforço policial e ameaçam a paz social.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

PRESO POR ROUBO MILIONÁRIO DIZ SER VÍTIMA DE ERRO EM INVESTIGAÇÃO

G1 FANTÁSTICO Edição do dia 23/08/2015


Imagens exclusivas mostram roubo de RS 20 milhões à fábrica da Samsung. Para a polícia, o crime está solucionado.


Imagem para o resultado de notícias

Um assalto milionário! Aconteceu em julho de 2014, no interior de São Paulo. Bandidos invadiram um depósito lotado de celulares e computadores e levaram o equivalente a R$ 20 milhões. Agora, um ano depois do crime, nossos repórteres tiveram acesso às imagens da ação dos criminosos. E vão contar a história de um homem, acusado de ser um dos assaltantes, que jura inocência e se diz vítima de um grande erro nas investigações.


Parece um dia normal de trabalho, mas não é. A sala começa a encher, até ficar lotada. São quase 100 funcionários. Todos reféns de uma quadrilha.

As imagens são exclusivas do roubo dentro da fábrica da Samsung, em 2014, em Campinas, interior paulista.

Os ladrões levaram R$ 20 milhões em celulares, tablets e computadores. Para a polícia, o crime está solucionado. Parte dos equipamentos foi recuperada.

Seis acusados estão presos. Cinco ainda não foram encontrados.

Fantástico: Seu nome todo?
Dalmo Arnaldo Pinto, microempresário: Dalmo Arnaldo Pinto.
Fantástico: Sua idade?
Dalmo Arnaldo Pinto: 48 anos.
Fantástico: Sua profissão?
Dalmo Arnaldo Pinto: Microempresário.

Dalmo tem uma revendedora de produtos de limpeza e equipamentos hospitalares há 22 anos. Há oito meses está preso, acusado de participar do assalto. Ele jura inocência.

“Eu sou um trabalhador. Um pai de família. E fui injustiçado por uma polícia que não investiga, prende”, afirma Dalmo Arnaldo Pinto.

“Ele está preso por uma falha dentro das investigações que foram feitas”, afirma Silvia Souza Carvalho, advogada de Dalmo.

Fim da noite de domingo, 6 de julho de 2014. Criminosos armados param uma van com nove funcionários da Samsung. Sete são levados para um cativeiro. Os ladrões pegam os crachás e vão para a fábrica, junto com dois reféns.

Se passando por trabalhadores, os bandidos conseguem entrar. E obrigam os seguranças a liberar a entrada de sete caminhões. Segundo a polícia, cerca de 20 homens participam do assalto. Nenhum usa capuz. O assalto dura três horas.

O Fantástico teve acesso a mais de 30 horas de imagens, feitas por 17 câmeras. O microempresário Dalmo Arnaldo Pinto, acusado de ser um dos ladrões, não foi identificado por essas imagens.

Dalmo Arnaldo Pinto: Não tem filmagem nenhuma porque eu não participei, não estava lá e sou inocente.
Fantástico: No dia que aconteceu o assalto, você estava aonde?
Dalmo Arnaldo Pinto: Em casa.

“Eu afirmo para o senhor que o meu marido estava comigo no dia, que ele nunca saiu do meu lado”, conta Rute Jesus Pinto, mulher de Dalmo.

Dezesseis funcionários que foram mantidos reféns são testemunhas. Um deles descreveu um dos ladrões assim: "negro, alto, magro e com bigode ralo, que operou uma empilhadeira".

A polícia mostrou uma foto de Dalmo para esse funcionário. A única foto do microempresário que consta no processo é a mostrada no vídeo acima. Segundo Dalmo, é antiga, de sete anos atrás.

A testemunha afirmou reconhecer o microempresário "sem sombra de dúvida".

Por causa desse depoimento, Dalmo foi preso em casa, na Zona Norte de São Paulo, cinco meses depois do roubo. Na delegacia, o mesmo funcionário viu o microempresário e confirmou o reconhecimento.

“Meu marido já não usa bigode há mais de três anos. Meu marido tem por volta de 1,77 metro. Ele estava pesando por volta de 110 quilos”, diz Rute Jesus Pinto.

O funcionário que reconheceu Dalmo também viu a foto de outro homem e também afirmou se tratar de um dos ladrões. Mas, era impossível este homem ter participado do assalto. Ele morreu em 2008, como mostra o atestado de óbito obtido pelo Fantástico.

“Sou leigo, mas essa testemunha perdeu força”, diz Dalmo Arnaldo Pinto.

Se Dalmo diz nunca foi assaltante, por que tinha uma foto nos arquivos da polícia? A defesa dele tem uma suspeita.

Segundo as investigações, dois outros homens, Erivaldo Alves de Souza e Ernandes Rodrigues dos Santos, participaram do roubo à Samsung. Eles foram presos cinco meses depois do crime.

Erivaldo e Ernandes já tinham vários antecedentes. Uma das condenações dos dois foi em 1993, por receptação.

Erivaldo e Ernandes negociavam uma carga roubada de medicamentos. A mercadoria estava guardada num depósito, na Zona Oeste de São Paulo. Quem trabalhava nesse lugar, 22 anos atrás? Dalmo Arnaldo Pinto.

“Não participei disso. Eu era funcionário”, afirma o microempresário.

Na época, Dalmo ficou 20 dias preso. Mas o dono do depósito confirmou que Dalmo não sabia de nada. Ele foi solto e a denúncia arquivada.

O microempresário acha que a polícia o envolveu no roubo da Samsung porque ele aparece no boletim de ocorrência de 22 anos atrás, junto com os condenados por receptação Erivaldo e Ernandes.

“Não conheço esses homens. Eu sou um homem que está sendo injustiçado”, diz Dalmo Arnaldo Pinto.

A Secretaria de Segurança Pública informou que "todos os procedimentos da polícia seguiram rigorosamente a lei".

O Ministério Público disse que, "durante o processo, todas as provas serão analisadas com direito a ampla defesa".

Dalmo está preso há oito meses em um complexo de cadeias em Hortolândia, no interior de São Paulo. Ele divide uma cela de apenas 20 metros quadrados com 40 detentos. A capacidade é só para 12 homens. Dalmo tem quatro filhos e é pastor evangélico.

“Quando eu não estou pregando, eu estou lendo. Estou ocupando a minha mente”, conta o microempresário.

A Justiça já negou três pedidos de habeas corpus. Uma das decisões, de março afirma que ele tem "condenações por receptação, roubo, resistência e posse de arma".

“A minha ficha é limpa”, afirma Dalmo Arnaldo Pinto.

O Tribunal de Justiça de São Paulo confirma: "nada consta" na ficha de Dalmo.

No Sistema Nacional de Informações Criminais do Ministério da Justiça, ele também não tem registro de antecedentes.

O presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Secretaria de Justiça do governo de São Paulo, afirma:

“Estamos diante claramente de uma flagrante injustiça praticada e não observada corretamente pelo poder judiciário de São Paulo”, diz Rildo Marques de Oliveira, presidente da Condepe de São Paulo.

O Tribunal de Justiça de São Paulo informou que já consta no processo que Dalmo não tem antecedentes criminais. Mas não explicou de onde tirou a informação errada de que o microempresário tinha condenações.

Na nota, o tribunal também diz que a prisão preventiva de Dalmo é "necessária e imprescindível, mesmo sendo primário, com residência fixa e ocupação lícita".

Dalmo pode ser condenado a 20 anos de cadeia. Ainda não há previsão de quando ele será julgado para tentar provar a própria inocência.

Fantástico: Quando você sair daqui, qual vai ser a sua primeira atitude?
Dalmo Arnaldo Pinto: Vou para a igreja, agradecer a Deus e abraçar minha família.

domingo, 23 de agosto de 2015

ESTACIONAMOS NA BARBÁRIE



ZERO HORA 23 de agosto de 2015 | N° 18271

ENTREVISTA


LUIZ EDUARDO SOARES POR LETÍCIA DUARTE




Mestre em Antropologia, doutor em Ciência Política e pós-doutor em Filosofia Política, Luiz Eduardo Soares é um dos grandes críticos da violência institucional no Brasil. Ex-secretário nacional de Segurança Pública (em 2003) e ex-coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro (de 1999 a março de 2000), também é coautor dos livros que deram origem aos dois filmes Tropa de Elite. Nesta entrevista, Soares, que está lançando seu livro mais recente, Rio de Janeiro: Histórias de Vida e Morte, pela Companhia das Letras, comenta as dificuldades de mudar a cultura de brutalidade no Brasil, o divórcio entre medidas políticas bem-intencionadas e a realidade cotidiana da atuação policial e o que pode ser feito para mudar um cenário em que a sociedade clama por soluções violentas.

O que o caso da chacina da grande São Paulo, apontado como uma vingança policial, diz sobre o Brasil atual?

Mais do que diz, grita a plenos pulmões que estacionamos na barbárie, no que diz respeito à relação do Estado com os grupos sociais que habitam os territórios mais vulneráveis. Casos como esse não são isolados, conforme sugerem algumas autoridades. Eles pontuam com um banho de sangue mais extravagante e ostensivo a rotina das execuções extrajudiciais, perpetradas por policiais, que continuam a ocorrer em todo o país. A tradição dos esquadrões da morte, das scuderies e das milícias persiste, resistindo à promulgação da Constituição. A lógica perversa da vingança engata, entre si, as facções criminosas e os segmentos policiais que recusam a regência da legalidade, e faz derramar sobre a sociedade o veneno da brutalidade letal. A persistência só tem sido possível porque as vítimas têm cor, classe social e endereço específicos. Se as marés de sangue banhassem as camadas médias da população, já se teria dado um basta a este horror.

Quais são as origens do problema? Qual o peso da formação policial na persistência desses casos?


As origens reportam-se aos séculos de escravidão, que injetaram o racismo na veia de nossa formação histórica e disseminaram determinado modelo de relação entre as classes sociais, e entre o Estado e os grupos subalternos, economicamente. Assim como a massa assistiu bestializada à proclamação da República, esteve sempre distante do teatro do poder. Por outro lado, as ideias de igualdade perante a lei e de justiça como equidade nunca se radicaram em nossa cultura política ou nas práticas das instituições, especialmente aquelas inscritas no campo da justiça criminal e da segurança pública. O gesto de Ulysses Guimarães, erguendo a nova Constituição em triunfo, não encontrou correspondência nas atitudes cotidianas do policial uniformizado na esquina, personagem que representa a face mais tangível do Estado para a grande maioria da povo brasileiro. Enquanto a segurança pública não espelhar o princípio da equidade, o Estado democrático de direito e a própria institucionalidade jurídico-política serão vistos com suspeita e ceticismo. Nesse contexto, a formação policial é mais uma consequência do que uma causa, ainda que também concorra para reproduzir os problemas referidos.

Por que é tão difícil mudar a cultura de violência policial?


Porque ela é autorizada pela sociedade, tolerada – quando não incitada – pelos gestores do Poder Executivo, admitida pelo Ministério Público e abençoada pela Justiça, salvo quando os casos chegam à mídia e provocam alguma comoção. Claro que há exceções, honrosas e admiráveis. Entretanto, de um modo geral, no país, as exceções confirmam a regra.

Em que medida a tolerância da sociedade, a crença do “bandido bom, bandido morto” agrava o problema?

Agrava muitíssimo. Mais do que isso: essa crença é o combustível da “cultura da violência”, assim como das práticas estimuladas por este ethos corporativo. Na medida em que o suspeito é definido como inimigo a ser eliminado, a ideia (falsa) de que estamos numa guerra acaba sendo evocada para justificar tanto as mortes provocadas pela ação policial, quanto as mortes de policiais, que são inúmeras e poderiam ser evitadas, se a vida (de todos) fosse a prioridade das políticas de segurança. Contudo, essa crença que confunde justiça com vingança é alimentada por alguns programas de rádio e TV, e nunca foi sistematicamente combatida, porque a segurança até hoje não entrou na agenda pública para valer. Em outras palavras, a mudança da arquitetura institucional da segurança pública, que herdamos da ditadura, ainda não se tornou uma questão prioritária para o conjunto da sociedade e dos agentes públicos. Infelizmente, segurança entra na pauta somente nas crises, quando vozes compreensivelmente indignadas clamam por vingança e políticos demagogos e oportunistas, de direita e esquerda, advogam penas mais duras, surfando na onda, como se fazer o mesmo com mais intensidade pudesse produzir resultados diferentes.

Qual seria o primeiro passo para mudar esse pensamento? Que experiências podem ser inspiradoras?

Educação para a cidadania é o remédio, mas esse tipo de formação só existe em grande escala quando se torna parte nuclear do processo educacional e quando a educação de qualidade é acessível a todos. Outro ingrediente importante é o papel dos liberais. Infelizmente, quase não houve, nem há, liberais no Brasil. Nossos liberais apoiaram a escravidão e as ditaduras. Hoje, são proibicionistas, justificam a violência policial e toleram nosso sistema penitenciário. Resumem seu liberalismo à economia, mesmo assim apenas enquanto seus interesses não estão em risco. Caso contrário, fogem do mercado e se escondem sob as asas do BNDES. A maioria de nossos liberais pensa que direitos humanos é bandeira da esquerda – mesmo que os teóricos da esquerda a considerem liberal e só a aceitem taticamente, como recurso provisório para acumular forças e isolar “os inimigos de classe”. Enquanto não houver um centro ideológico-político liberal, que abrace as causas que deveriam ser as suas, como a equidade, enquanto a crítica à violência policial permanecer monopólio da esquerda, o destino das denúncias será o gueto, o isolamento político e a impotência para promover mudanças. E a brutalidade institucionalizada contra negros e pobres persistirá, pulverizando a lealdade popular ao Estado democrático de direito.

UMA SOCIEDADE REFÉM DO CICLO DA VIOLÊNCIA



ZERO HORA 23 de agosto de 2015 | N° 18271


VIOLÊNCIA POLICIAL


Que distância separa as execuções cometidas por vingança, como a chacina da grande São Paulo, das arbitrariedades cotidianas nas abordagens policiais em todo o país?


Um vídeo de 2 minutos e 47 segundos que circula pelas redes sociais dá uma dimensão daquilo que não aparece nos registros oficiais da polícia militar gaúcha. As imagens, gravadas durante ocorrência em Porto Alegre, mostram um jovem baleado, agonizando no chão, enquanto brigadianos desdenham e desejam sua morte, com frases como:

“Aiai, não tá doendo em mim, filho da puta.”

“Não morreu ainda?”

“Vai, vai embora”.

Em uma das cenas, o rapaz rendido diz que “só queria um pouquinho d´água.” Os policiais o incentivam a tomar o líquido de uma poça d’água lodosa junto ao cordão da calçada. Ele toma.

“Cara, eu tô baleado, vou morrer.”

“Não tem problema, é menos um para dar tiro nos polícia.”

O vídeo foi gravado por policiais em 13 de novembro de 2013, na Avenida Sarandi, e recentemente ressurgiu em postagem no Facebook, provocando discussões. O jovem que aparece nas imagens é Jonas Martins Gonçalves, 30 anos, conhecido pelo apelido de Ladaia. Ele cumpre pena de 10 anos e oito meses por tentativa de latrocínio no Presídio Central. Tem antecedentes por roubo de carros e tráfico. E naquele dia teria tentado roubar a tiros o veículo de um policial à paisana, que reagiu atirando e o baleou.

Seria mais um caso rotineiro de prisão se as imagens dos bastidores não tivessem sido gravadas pelos policiais e expostas na internet. No tribunal inflamado das redes sociais, houve gente que vibrou com as humilhações aplicadas pelos policiais a Jonas, que agonizava no chão. Mas a própria corregedoria da BM admite excessos na ação.

– Há ali fortes indícios de ação irregular daquela guarnição – avalia o corregedor-geral da BM gaúcha, Jefferson Jacques, depois de assistir ao vídeo a pedido da reportagem do PrOA.

Ao tomar conhecimento do vídeo, o juiz de direito da 2ª Vara Criminal Léo Pietrowski determinou em 7 de agosto a apuração do caso. De acordo com a corregedoria da BM, foi aberta na semana passada uma investigação pelo comando do 20º Batalhão, responsável pela ocorrência, com prazo de 40 dias. O policial Edson Poli, que segundo o processo foi vítima da tentativa de assalto por Jonas e o baleou depois de ter o carro alvejado por ele com seis tiros, disse ao PrOA que não prestou atenção em quem estava gravando o vídeo, porque “estava mais preocupado com meu carro e com a minha segurança”, mas entende que cada um tem “liberdade de filmar”.

– As pessoas são livres de opiniões. Não tem ninguém chutando ou cuspindo. Vou te dizer: eu estava com uma pistola com 13 tiros, se eu quisesse matar eu teria matado.

E se espantou com a repercussão do vídeo.

– Já vi vídeos muito mais fortes – minimizou.

A família de Jonas, que mora em Viamão, assistiu a trechos do vídeo pela televisão, num programa policialesco. Ficou atônita.

– Eu sei que ele errou e que escolheu essa vida. Mas ele não merecia ser humilhado daquela maneira, até tomar água do esgoto. Isso matou a gente – disse a irmã de Jonas, a doméstica desempregada Vanessa Martins Gonçalves, 33 anos.

A defensora pública Alessandra Quines Cruz, coordenadora geral do Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, diz que o órgão estuda entrar com um pedido de indenização a Jonas.

– Não sei o que é pior, um cidadão cometendo um crime ou um policial, que estudou e deveria proteger a sociedade. Se formos ficar no olho por olho, dente por dente, vamos viver numa sociedade de desdentados e caolhos. O resultado é catastrófico – argumenta.

Desde janeiro de 2014, quando foi criado, o órgão da Defensoria gaúcha já recebeu 172 denúncias de violência policial – 80% dos casos se referiam a agressões cometidas pela Brigada Militar. Especialistas em segurança concordam que os abusos policiais cometidos no cotidiano, e muitas vezes tolerados por uma população descrente no sistema de Justiça, são combustíveis para a barbárie.

– A ideia de que bandido bom é bandido morto é um grande engano. Só dramatiza o problema, porque a sociedade fica refém do ciclo de violência. É um matar e morrer contínuo, e no meio do caminho você pode morrer de bala perdida. A população aplaude agora, depois reclama quando isso atinge alguém próximo – observa Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da FGV-SP.

A LEI FORA DA LEI

 

ZERO HORA 23 de agosto de 2015 | N° 18271


POR LETÍCIA DUARTE



Suspeita de que policiais tenham participado da chacina de Osasco e Barueri levanta discussão sobre cultura de abusos dos agentes da lei



O sangue ainda manchava as calçadas, as famílias choravam pelos 18 mortos na maior chacina do ano em São Paulo, o país tentava entender por que criminosos saíram disparando em ruas e bares de Osaco e Barueri na noite do dia 13. Em meio a discursos eloquentes e promessas de providências pelas autoridades nas primeiras horas subsequentes, a frase dita pela costureira Rosângela Gonçalves revelou não o choque das comunidades atingidas pelo horror, mas a desilusão.

– Quando morre um policial, pode saber que em até 15 dias vai ter uma chacina. Nunca vai mudar, aqui não existe Justiça – sentenciou Rosângela, que três anos antes havia perdido o filho em outra chacina, e desta vez perdeu um amigo, em entrevista à Folha de S. Paulo.

Desde então, a linha de investigação que aponta para a participação de policiais militares e guardas civis na chacina, como vingança pela morte de dois colegas, só ganhou força. O caso se tornou um novo emblema da violência policial no país, acrescentando personagens a um enredo conhecido, em que frequentemente autoridade se confunde com o abuso da força. Pesquisa divulgada no mês passado revelou que 62% dos moradores de cidades com mais de 100 mil habitantes do país têm medo de sofrer agressão da PM, enquanto 53% deles têm medo da Polícia Civil. Realizado pelo Datafolha, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o levantamento ouviu 1.307 pessoas em 84 municípios.

Mas o que explica tamanha violência policial? Para Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do Fórum e professor da FGV São Paulo, essa resposta está diretamente relacionada a um sistema de segurança pública ineficiente, que mistura altas taxas de letalidade com uma “impunidade obscena”. Pesquisas indicam que a taxa de esclarecimento de homicídios no Brasil é de 8%, enquanto o tempo médio de julgamento de assassinatos é de oito anos e três meses. Num contexto de pouca investigação e punição, cresce o protagonismo da Polícia Militar, responsável pelas prisões em flagrante, dentro de um sistema em que as próprias corporações não conseguem garantir condições de vida adequadas a seus membros.

– Nesse quadro perverso nasce a ideia da cultura do confronto, num ato contínuo de matar e morrer. O policial é colocado como um herói vingador. O Brasil está longe de poder dizer que é civilizado no campo da segurança pública – observa Lima.

Para a cientista social Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro, as execuções extrajudiciais remetem a práticas medievais: assim como os senhores feudais tinham seus vingadores para julgar e punir, hoje os agentes da lei executam suas próprias leis sob a crença de que são justas, e ao fazer justiça com as próprias mãos aumentam as injustiças. O desfecho trágico é que esse tipo de atitude não se reverte em menos mortes, como imagina quem pratica ou tolera crimes em nome da “limpeza social”.

– O excesso de violência por parte da polícia só estimula a violência dos criminosos, como no caso típico do Rio. O criminoso é pego e diz: “perdi, perdi”. E o policial responde: “perdeu nada, eu quero a sua alma”. Aí executam criminosos rendidos. Isso produz um ciclo crescente de vingança, ficam os dois lados disputando para ver quem é o mais cruel, o mais covarde. É uma sanha assassina, uma orgia de brutalidade – analisa Silvia.

Não é só em São Paulo e no Rio de Janeiro que as execuções extrajudiciais se repetem. Apenas em 2015, o Brasil registrou chacinas em outros seis Estados, com um total de 85 mortos – e apenas 23 responsáveis presos, segundo levantamento apresentado no programa Bom Dia Brasil de sexta-feira. Somando-se aos 56 mortos que se somam nas ocorrências de São Paulo, já são 141 brasileiros vítimas de chacina neste ano. O envolvimento de policiais é recorrente. Intitulado Você Matou Meu Filho!, um relatório divulgado no início deste mês pela Anistia Internacional aponta para o agravamento do problema. O estudo constata aumento de 39% no número de homicídios decorrentes de intervenção policial no Estado do Rio de Janeiro entre 2013 e 2014. Cerca de 80% dos 220 casos de homicídios cometidos por policiais em 2011 permaneciam em aberto até 2015 – e apenas um foi denunciado à Justiça pelo Ministério Público. Para Alexandre Ciconello, assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional, o baixo controle sobre as violações – tanto pelos frágeis controles internos (própria polícia) ou externo (que deveria ser feito pelo Ministério Público) – está por trás da repetição de tragédias associadas à atuação policial em todo o país.

– Não é só a polícia que mata. É também a falta de investigações dos homicídios, o Ministério Público que se omite e não cumpre seu papel, o Judiciário que é moroso. Existe uma estrutura que falha, permite que haja uma licença para matar – analisa Ciconello.

Essa licença não vem de hoje. Para o professor Rodrigo de Azevedo, coordenador do programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS, a estrutura defasada que mantém a divisão entre uma polícia que só patrulha e outra que só investiga está na origem dos problemas, ao criar dificuldades de integração e aumentar a precariedade do serviço. A legitimação de práticas violentas seria outra pendência histórica, como a falta de responsabilização a quem cometeu torturas durante a ditadura.

– Os torturadores se mantiveram nos seus cargos, então isso legitima esse tipo de prática. Não houve depuração na polícia. Isso indica um processo não acabado de democratização. A formação melhorou com a inclusão de direitos humanos nas academias, mas o conteúdo das aulas não é o mesmo que o currículo oculto na convivência com seus pares. Há omissão por parte do comando e ineficiência dos mecanismos de controle, que acabam gerando a dinâmica do nós contra eles – constata Azevedo.

De tão difundidos, os excessos acabam naturalizados, especialmente em contextos de periferia, onde a invisibilidade é regra. Até chegar a uma chacina, quantos abusos foram tolerados antes?

– A sociedade se autojustifica, dizendo: “ah, talvez fossem bandidos”. O mesmo policial que dá um tapa na cara do garoto na periferia, quando vai revistar jovens de classe média nos Jardins se comporta como um lorde. Começa com um chute aqui, um tapa na cara acolá, dali a pouco o policial coloca um pouco de droga para fazer um flagrante forjado, mais um pouco e se tem uma chacina – alerta a cientista social Silvia Ramos.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

O BOICOTE DA POLÍCIA




ZERO HORA 11 de agosto de 2015 | N° 18256



EDITORIAL




As notícias sobre o recrudescimento da criminalidade no Estado ganham relevância no momento em que parte dos policiais civis e militares, revoltados com o atraso de seus salários, recusa-se a atender a população e a divulgar informações sobre suas atividades. Trata-se de uma afronta ao cidadão que continua pagando seus impostos para ter um mínimo de proteção por parte do Estado. Por mais que se entenda a situação de servidores que não recebem em dia, não há como compactuar com reações desse tipo, provocadas por decisões de lideranças e muitas vezes em desacordo com a posição dos próprios subordinados. Sonegar serviços essenciais, como forma de provocar algum tipo de reação do governo, é uma estratégia pouco inteligente.

Os efeitos de tal postura são bem conhecidos. O primeiro e mais visível é o prejuízo de quem tem alguma demanda com o setor de segurança. Mas o dano maior atinge a todos, direta e indiretamente, pelo clima de desproteção e pelo sentimento de que a sociedade não pode contar com os que deveriam protegê-la. Os delinquentes sabem tirar proveito de momentos como esse, como se revela na sequência de eventos claramente relacionados com a percepção geral de que a ausência de policiais nas ruas, cuja atuação já era deficiente, por falta de quadros, agravou-se nos últimos dias.

Não será pela omissão que os policiais, e quaisquer outras áreas do funcionalismo, conseguirão sensibilizar a população e as autoridades para o atendimento de seus apelos. Uma causa justa não pode conduzir à armadilha de transformar servidores públicos em cúmplices do medo e da insegurança.

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Título equivocado. Visão distorcida. O boicote não foi da polícia, mas do governo que cortou verbas e salários das forças de segurança pública, levando a uma forte reação dos familiares, da população e das associações de classes dos policiais.  A polícia ainda foi às ruas, continuou investigando e prendeu bandidos. O quadro se agravou mais pelos corte do governo do que pela insatisfação dos policiais. E o aumento da criminalidade é patrocinada por leis permissivas aprovadas pelos legisladores, por uma justiça leniente avalizada pelas autoridades de justiça, e por uma execução penal irresponsável que tem a conivência dos poderes, a negligência do Executivo, a morosidade do judiciário e omissão dos órgãos da execução penal.