ZERO HORA 14 de fevereiro de 2016 | N° 18445
JULIANA BUBLITZ
CRISE NA SEGURANÇA
DIARIAMENTE
TENTANDO FREAR A epidemia de violência que se espalha pelas ruas,
agentes da segurança pública têm momentos de descanso. Nestas horas,
quando a profissão deveria ficar de lado, muitos acabam se tornando alvo
dos bandidos
A violência que se alastra pelo Rio
Grande do Sul não faz distinções. Sem farda ou uniforme, quando estão de
folga, policiais civis, militares e agentes penitenciários também são
alvo do crime. Tornam-se, eles próprios, vítimas da epidemia que tentam
conter.
Nesta reportagem, ZH retrata os casos de quatro
profissionais experientes, acostumados a atuar em situações de
conflito, que acabaram na mira de ladrões quando menos esperavam, bem
longe das delegacias, dos batalhões e das cadeias.
Dois
deles reagiram e não sofreram ferimentos graves, mas poderia ter sido
pior. No último dia 23, um colega das vítimas retratadas nestas páginas,
o sargento Arilson Silveira dos Santos, tentou impedir um assalto e foi
morto. Embora não sejam divulgadas estatísticas oficiais, os ataques
contra servidores da segurança pública fora do expediente preocupam as
entidades de classe. Os casos são cada vez mais comuns.
–
Os bandidos não respeitam mais ninguém, nem quando descobrem que a
vítima é um policial – lamenta o presidente da Associação de Cabos e
Soldados da Brigada Militar, Leonel Lucas, que também foi assaltado
recentemente.
– É sintomático. Toda semana ouvimos
novos relatos – reforça Flávio Berneira Júnior, à frente do Sindicato
dos Servidores Penitenciários do RS.
ÚLTIMOS DOIS CHEFES DE POLÍCIA FORAM ATACADOS POR CRIMINOSOS
Nem
o alto escalão escapa. Os últimos dois chefes da Polícia Civil,
Guilherme Wondracek e Ranolfo Vieira Júnior, em momentos distintos,
foram atacados por bandidos. Exonerado na quarta-feira, Wondracek chegou
a admitir que evitava sair de casa à noite, sinceridade que pode ter
lhe custado o cargo.
O novo titular, Emerson Wendt,
estudou a cultura do medo na sua dissertação de mestrado. E reconhece
que, como qualquer pessoa, policiais de folga podem ser alvo de
criminosos. Ainda diz adotar medidas preventivas, mas lembra que “riscos
existem em todo o mundo” e que profissionais da área estão preparados
para avaliá-los.
– O policial anda armado e precisa ter
cuidado extra. Sabe quando pode reagir ou não – diz Wendt, que foi
furtado em Madri, no ano passado.
Entre os agentes
afetados pela onda de violência, a frustração é dupla. À paisana,
sentem-se vulneráveis. No trabalho, reclamam, principalmente, da falta
de recursos e de efetivo. O governo reconhece o problema, mas alega que a
crise financeira impede novas contratações e grandes investimentos.
“Foi uma sensação horrível, de impotência”Sargento
Ricardo Agra, 51 anos, 33 deles na Brigada Militar. Atua no Quartel
General da BM em Porto Alegre“Passei por uma experiência horrível em
setembro de 2015. Saí do trabalho no fim da tarde e peguei a minha
esposa no serviço. Fomos de carro até uma padaria, para comprar pão
antes de ir para casa. Quando paramos, dois elementos surgiram, um de
cada lado do veículo.
Os dois estavam armados. Um deles apontou
uma pistola para a cabeça da minha mulher e mandou ela sair. Aquilo me
paralisou. Também estava armado e preparado para reagir, mas decidi não
fazer nada para evitar que ela se ferisse. O assaltante foi agressivo e
disse que queria a bolsa. Ela respondeu que não ia entregar, e só lembro
que gritei: ‘Fica quieta!’ Por sorte, ele não atirou.
Enquanto
isso, saí do carro e deixei que eles levassem o veículo. Enquanto
fugiam, podia ter disparado. Algumas pessoas viram o que aconteceu e
gritaram para atirar, mas havia muita gente na rua naquele horário.
Tinha muita gente na parada de ônibus. Decidi não fazer nada, porque
havia o risco de alguém se ferir. Foi uma sensação horrível, de
impotência. E a minha mulher ficou muito traumatizada. Naquele fim de
semana, ficamos praticamente trancados em casa. O carro foi recuperado
no dia seguinte, graças à minha vivência no mundo policial e ao apoio de
colegas, mas o trauma permanece. Os bandidos não fazem distinção entre
as vítimas. Todos podem ser alvo de delinquentes, e isso só piora com a
falta de investimentos na segurança pública. Com tudo o que tenho visto e
com a falta de incentivo para a gente continuar trabalhando, decidi que
vou me aposentar. Vou deixar a Brigada Militar em março ou abril.
Cansei.”
“Achei que ia morrer”Comissário
de 51 anos, 33 deles na Polícia Civil. Atua na Delegacia de Roubo de
Veículos do Departamento Estadual de Investigações Criminais, o
Deic“Sofri um assalto em janeiro do ano passado na zona sul de Porto
Alegre. Eram 9h20min, e me preparava para viajar para a praia com a
família. Fiz tudo o que a gente orienta as pessoas a não fazerem:
carreguei o carro na rua, sem observar se tinha algum estranho por
perto. Me descuidei totalmente.
Minha filha já estava dentro do
veículo, quando abri a porta para entrar e seguir viagem. Nesse momento,
do nada, apareceu uma arma na minha testa. Estava com um pé dentro e
outro fora.
Já tinha tirado a arma da cintura e estava com ela no
meio das pernas. Só que, quando saquei a pistola, ela não estava bem
posicionada e caiu no chão. Foi tudo muito rápido.
O assaltante
disparou contra o meu peito. A bala raspou o mamilo esquerdo. Ardeu
muito. Já tinha orientado minha filha sobre o que fazer se algo assim
acontecesse. Ela saiu correndo, e eu, também.
O criminoso pegou
minha arma e entrou no meu carro. Já estava quase dentro de casa, quando
me dei conta de que a chave do veículo estava no meu bolso, e o ladrão
me mandou voltar. Entreguei a chave, e ele fugiu.
Quando olhei
para o meu peito, vi sangue e achei que ia morrer. Foi sorte não ter
acontecido nada mais grave. Sete dias depois, o sujeito foi capturado e
acabou sendo condenado a oito anos de prisão.
Hoje, cada vez que
alguém aparece do lado do meu carro, está na mira da minha arma. Não
consigo mais ficar tranquilo. Se nós estamos à mercê da criminalidade,
imagina o cidadão comum.”
“No momento de folga, estava diante da morte“Agente
penitenciária de 44 anos, 13 deles na Superintendência dos Serviços
Penitenciários. Atua em diferentes presídios do Estado“Estava voltando
pra casa a pé, com meu filho e a namorada, quando dois homens, um de
boné e um de capuz, chegaram por trás gritando ‘entrega tudo’. Quando me
virei, tinha um revólver apontado para a minha cabeça. Vi o pavor nos
olhos do meu filho. Qualquer reação minha poderia implicar fatalmente o
fim das nossas vidas. E ali, no meu momento de folga, de um trabalho que
nos suga até a alma, estava diante da morte.
A sensação de
impotência é cruel. Acho que qualquer pessoa que sofre situação de
violência sente isso. Mas, para nós, que representamos a segurança do
Estado, é bem pior. Porque, apesar de tudo, somos um ‘símbolo’. Ouvi
muitas vezes de meus familiares e vizinhos: ‘Nossa, até vocês estão
sendo assaltados! Estamos perdidos mesmo!’ Como se a violência pudesse
atingir a todos, mas quando nos atinge, simbolicamente, está se dizendo à
população que o jogo está perdido.
E estamos perdendo feio
mesmo. Daí a gente vai trabalhar e lá depara com a falta de tudo.
Principalmente com a falta de efetivo, pela ineficiência de todo esse
sistema cada vez mais falido. Saímos vivos. Quantos já morreram nestes
últimos tempos vítimas desta violência desenfreada? Quantos ainda
precisarão morrer até que o governo reconheça a sua responsabilidade
nisso tudo? Não tem como haver segurança sem policiamento. Não tem como
investigar os crimes sem a Polícia Civil. Não existe possibilidade de
ressocialização e controle da massa carcerária sem agentes
penitenciários.”
“A criminalidade está em todo lugar”Escrivão
de 45 anos, seis deles na Polícia Civil. Atua na Delegacia de Capturas
do Departamento Estadual de Investigações Criminais, o Deic“Fui alvo de
dois assaltos quando estava fora do expediente. O primeiro foi em 2013.
Estava chegando em casa e fui abordado por dois jovens bem vestidos,
pedindo informações. Quando fui ajudar, me calçaram. Começaram a mexer
nos meus bolsos, acharam a minha algema e ficaram nervosos. Então tentei
distrair os dois e gritei: ‘Olha ali, tem uma criança no carro, deixa
eu tirar!’ Quando olharam, reagi. Trocamos dois tiros (na foto, policial
mostra as cápsulas deflagradas). Eles fugiram e ninguém se feriu.
O
segundo episódio foi na noite de 5 de janeiro deste ano. Tinha ido ao
supermercado com a minha mulher. Quando chegamos em casa, vi um Gol com
vidros escuros, andando devagar. Minha mulher entrou em casa, e já
fiquei com a arma na mão. O Gol passou por mim e parou. Dois homens
vieram correndo, anunciando o assalto. Um deles estava armado. Só depois
descobri que era arma de brinquedo. Abri a porta do carro e gritei:
‘Polícia!’. Dei dois tiros. Eles saíram correndo, e o Gol arrancou.
Disparei nos pneus. Consegui prender um dos ladrões. Ele contou onde os
outros moravam. Liguei para colegas das delegacias de Capturas e de
Roubos, e vieram me ajudar. Resultado: três suspeitos acabaram presos e
dois menores, apreendidos. Na casa de um deles, encontramos o Gol usado
no assalto e quatro veículos, dois roubados e dois clonados. Deu tudo
certo, mas a criminalidade está em todo lugar. Não está imune quem é
policial. Temos de estar cada vez mais atentos.”