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sexta-feira, 9 de março de 2012

O MITO DA "TOLERÂNCIA ZERO" DE RUDY GIULIANI

ARGEMIRO FERREIRA, TRIBUNA DA IMPRENSA ONLINE, 23/05/2006

Registrei nesta coluna minha discordância com a obstinação do jornalismo na Rede Globo em aclamar como exemplo para o Brasil e o mundo a ação da polícia de Nova York na gestão do prefeito Rudy Giuliani. A Globo adora a expressão "tolerância zero", da qual ele se apropriou, passando a cantar em prosa e verso, embora tal política, iniciada por seu antecessor, já existisse em outras cidades.

A verdadeira vocação de Giuliani, a julgar por seus oito anos como prefeito, é de marqueteiro. A 10 de setembro de 2001 ele parecia até conformado em sair definitivamente de cena. Pato manco, via sua imagem decompor-se diante do público. A mulher o exorcizava na residência oficial enquanto o prefeito desfilava com a amante e era denunciado por grupos de direitos civis como racista.

Os escândalos - que ainda incluíam o assassinato pela polícia do camelô Amadou Diallo e do segurança Patrick Dorismond, e a tortura do haitiano Abner Louima - o levaram a desistir, depois do tratamento de câncer na próstata, de disputar o Senado com a ex-primeira-dama Hillary Clinton. Não ia deixar saudade. Mas Osama bin Laden o socorreu no dia seguinte, 11 de setembro de 2001.
Festejando o falso herói
Marqueteiro esperto, teve o mérito de perceber a chance oferecida pelo chefe da al-Qaeda, diretamente daquela caverna no Afeganistão. Agarrou-se a ela. O World Trade Center, no coração financeiro da cidade, permitiu a encenação mais fantástica da história política do país. Giuliani circulava pelas ruas como barata tonta, cercado por câmaras de TV do mundo inteiro.

Deu entrevistas nos quatro cantos da cidade, abraçou bombeiros e policiais, chorou com parentes das vítimas do ataque, engrossou a voz para xingar os terroristas e deu-se até ao luxo de rejeitar milhões de dólares destinados por um xeque saudita às famílias atingidas - alegando, para tanto, que o doador tinha criticado a política externa agressiva e irracional do governo Bush no Oriente Médio.

Nada se sabe de produtivo que o prefeito tenha feito naqueles dias, mas a mídia, liderada pelo magnata australiano Rupert Murdoch ("New York Post", Fox), passou a celebrá-lo como herói (de que?). E quando o "Time" quis enfeitar a capa com Bin Laden como "homem do ano" (já o fizera antes com Hitler, Stalin e outros vilões), foi pressionado a trocá-lo pelo novo herói, suposto "prefeito da América".

Posso entender o marketing naquele momento de histeria. Mas não que cinco anos depois, quando o Estado de São Paulo é abalado pela ação coordenada de bandidos contra a polícia, paralela a rebeliões em presídios, Giuliani seja exaltado pelo jornalismo da Globo como modelo a ser seguido, supostamente por ter derrotado a criminalidade em Nova York.
A teoria das janelas quebradas
Os dados oficiais do FBI mostram que a criminalidade caiu sim, em Nova York e nas outras grandes cidades, na mesma proporção, em grande parte pelos avanços nos índices sociais. É verdade que existe uma teoria de combate ao crime e que o governo de Giuliani foi pródigo em citá-la, mas ela começou a ser aplicada bem antes desse prefeito ser eleito - e a criminalidade já declinava quando ele entrou.

Giuliani pode ser, no máximo, o marqueteiro que tenta faturar - e que, de forma obsessiva, busca apagar méritos de outros, até de seus próprios chefes de polícia. A política teve início com o empurrão de Raymond Kelly e William Bratton, ainda no período do prefeito negro David Dinkins. Os dois eram entusiastas da "teoria das janelas quebradas", exposta pela primeira vez em 1982.

Para alguns, é duvidosa. Segundo a teoria, não se pode deixar de consertar as janelas quebradas de um prédio. Se isso ocorre será provável a volta dos vândalos para destruir mais janelas. E o prédio, no desdobramento, ainda pode tornar-se residência de marginais. Assim, a polícia deve agir contra pequenos delitos, do contrário a situação se deteriora ainda mais, com a escalada da criminalidade.

George L. Kelling, pai dessa teoria, foi contratado para testá-la em Nova York pela Autoridade do Trânsito já em 1984, quase uma década antes de Giuliani se candidatar. William Bratton, ao se tornar chefe da Polícia de Trânsito em 1990, com o prefeito Dinkins, foi seu grande impulsionador. Só depois da eleição de 1993 é que Giuliani entrou em cena, com a rubrica "tolerância zero".
A incompetência e a mentira
O chefe de polícia Ray Kelly, primeiro a acreditar na teoria e em Bratton, seria sucedido por este, a partir de 1993. Mas os números mostram que a diferença maior deu-se ainda com Kelly. Giuliani o substituiu por Bratton, que depois seria demitido sumariamente pelo prefeito - como castigo por ter sido celebrado na capa da revista "Time", que o declarou principal responsável pelo êxito da política.

O chefe de polícia predileto de Giuliani, por isso mesmo, é o incompetente que terminaria o mandato em meio a controvérsia, Howard Safir - o pior dos últimos três, desmoralizado ainda por causa dos favorezinhos que recebia de ricaços, até viagem em jatinho para ver a festa do Oscar em Hollywood. Os números da gestão de Safir foram os piores, sem falar do aumento da brutalidade policial.

No período quatro policiais mataram com 41 tiros Amadou Diallo, imigrante africano, desarmado, à porta de sua casa, no Bronx. Tirava a chave do bolso para abrir a porta. Os assassinos foram absolvidos. Antes já fora morto pela polícia Patrick Dorismond, guarda de segurança. O haitiano Louima, que sobreviveu à tortura num distrito policial do Brooklyn, ganhou ação indenizatória de US$ 9 milhões.

Nem se a brutalidade tornasse a polícia eficiente seria justificável. Mas no caso a eficiência da polícia de Giuliani é outro mito. Entre os muitos casos que ela nunca solucionou está o assassinato, no Central Park, da brasileira Maria Isabel Monteiro Alves, em setembro de 1995. É isso a "tolerância zero" tão festejada pela Globo?

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